sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Saudades do menino deus
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Curitiba de esquina
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Filme inaugural do cansaço
Porque é a atividade mais passiva do mundo, que era sentar-se em frente a televisão e deixar que o filme corresse. Exaltado, suspirava, prendia a respiração, depois aliviada, o peito enrijecido, os músculos esclerosados, depois relaxados: era o máximo da ação performática nesse momento, o de ver o filme, e não há nenhum problema, penso, e talvez me desminta tão cedo escrevo isso, em querer poucos, breves, mas ainda sim alguns momentos de pura paralisia e expectativa: no sentido de: ser expectador, tornar-se expectador, meio cansado de ser agente de vez em quando.
Só me proponho a agir no grito, gritar, gritando como única ação: de modo que, minha garganta haja, eu não, haja no sentido de agir e de existir, só ela exista e se torne a ativa de uma ação: não meu corpo, meu corpo queria inerte por uns momentos. No meio da rua, no meio do trânsito, mesmo com o farol aberto, pensei inclusive em deitar no asfalto no meio do meio dia em que cruzava a cidade. Choveu, chove, meu corpo inerte seria arrastado pela correnteza, eu passivo de ação, descendo a Consolação arrastado pela correnteza, mas gritando, descendo, escorregando, gritando.
Por isso que eu gosto de ouvir música, acabo de raciocinar.
domingo, 12 de dezembro de 2010
No calor e na dança: nós deliramos.
Domingo a noite, um domingo quente, ouvindo Chan Chan e morrendo de vontade de aprender espanhol, essa vontade que antes me tomava apenas para me permitir ler os romances de Julio Cortàzar no original e que agora se extende a me permitir a possibilidade de cantar as músicas do Buena Vista Social Clube em seu original também. Uma vontade excelente de viajar, reler As veias abertas da América Latina, como se São Paulo e minha casa fossem pequenas demais para abrigarem, por hora e pelas próximas semanas, meu coração que se dilata. Penso que a vida não se complica se não nos enraizamos em território que foi imposto – penso que talvez a vida como foi descrita e por nós aprendida talvez não seja a certa ou talvez não seja a boa, e quero sair por aí, e viajar. Eu nunca seria de lugar nenhum. E não seriam meus os problemas de lugar nenhum. Eternamente de passagem, um eterno: passageiro. Quase como um vampiro assumido, sem vínculos, gostaria de me aproveitar puramente das belezas de Havana, de Buenos Aires, e depois de outras cidades pelo mundo tais como Nova York, Paris, Madras, Calcutá, Tel Aviv, sem pregos, sem pinos, vivendo uma vida em cada esquina de cada cidade, sem crimes que não os de consciência pesarosa: abandonada família, abandonados amigos, abandonada a universidade, mas talvez essas ideias que surgem em minha cabeça sejam fruto do calor, do calor e da rumba: no calor e na dança, nós deliramos.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Da autonomia não-alcançada (impressão)
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Do amor, essa falácia. O amor pelos outros e por nós mesmos.
Me considero um ser presente nas vidas das pessoas que por minha vida passam - não gosto de ser um ponto inútil, alguém com quem não se pode contar. Talvez seja essa minha missão nessa esfera humana em que vivemos - fazer valer a pena. Não hesito em ajudar, eu acho. Não hesito em doar meu tempo, meu esforço, minha paciência. Era um amigo abnegado. E nesses últimos tempos eu vinha sentindo isso, essa quase vulgarização da minha tolerância, da minha amizade. Vinha me sentindo como um prestador de serviços, que presta serviços mas não sente.
O amor me fez perceber isso, que eu sinto, e que se sinto o bem sinto também o mal. Sinto e já não quero mais hesitar ou esconder o que eu sinto, por causa dos outros, em nome dos outros. Olha a revolta, pera lá - mas não quero esperar, tampouco cair nessa armadilha de bom mocismo e convicção. Não vou e pronto, simples. Por quê? Porque eu não quero. Mas é egoísta da sua parte! É, é egoísta, assim como todos vocês tem sido comigo quando eu preciso. Ainda é cedo, não está na hora, vou ficar mais, tchau.
Tchau.
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
O meu interno ou da essência de cada um.
Quando descobri que eu podia colecionar as palavras que eu ia dizendo, tornei-me um mestre sobre Maria e ela fugiu. Vou chegar em casa hoje, as quatro da tarde, abrir as janelas do meu quarto e deixar o banho laranja de fim de tarde invadir tudo. Vou então brincar com as palavras, doces tentáculos esses que chicoteam as mãos alheias e no entanto afagam e fazem carinhos em minhas mãos. Vou escrever somente para te causar inveja do modo como faço também carinho nelas, Maria Pompidou. Esses dias, quando perdi qualquer excesso que haja em mim, eu descobri que em essência eu sou isso: palavras.
domingo, 26 de setembro de 2010
Entre santos
(Assumidamente, fiquei puto. Você não merecia que eu escrevesse sobre você. Você não merecia sequer que eu pensasse em você, em te encontrar no Parque Buenos Aires, você merecia que eu te calasse em minha memória e te tornasse um objeto obtuso em meu coração).
São Paulo, 26 de Setembro, depois da fossa-a-bossa-a-nossa-grande-dor.
sábado, 18 de setembro de 2010
Amors
sábado, 11 de setembro de 2010
Estomazil.
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Val paraíso
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Divina Comédia
Uma vida inteira cercada de anjos. Que a atendiam e lhe davam sorrisos fáceis, gracejos, roupas brancas – o céu era um grande jardim com crianças brincando, encravado no meio do sertão, poucos luxos na verdade, água, pão, frutas doces e mesmo Beatriz morava em uma casa de pau a pique. Quando sentia tristeza ou solidão se lembrava que era sobretudo um ser humano porque os seres dali não sentiam essas coisas – esses sentimentos ainda verdes, nada maduros, como a melancolia.
Um dia Beatriz despertou de um estado anterior de inconsciência – um sinal. Nascera para esperar por Dante. E descobriu que não era isso que queria mais. As roupas brancas, os varais vazios, esvaziou também algumas penteadeiras, uns álbuns de fotografia com fotos em preto e branco (seu pai, sua mãe, seus antepassados) e trancou cada uma daquelas coisas em três maletas de couro. Atravessou a sala, a varanda, e desceu por algumas ruas até que chegasse ao centro daquele lugar, onde as ruas já eram de pedras, e ponderou por alguns instantes sobre o que fazia, parada em frente à igreja da matriz. Se esquecera, então Beatriz se lembrara, do seu caderno. Voltou para a casa onde passara os últimos anos, sozinha, à espera de Dante, e encontrou, enrolado em uns panos velhos, na segunda gaveta da cômoda, o caderno onde transcrevera todas as sensações que fora aprendendo com o tempo. De começo, pensava, era um ser nulo, uma criação de argila posta naquele céu por alguma força superior afim de esperar. E era oca de sentidos, não sentia, mas não como os anjos que a cercavam. Beatriz não sentia porque não aprendera a sentir. E foi, aos poucos, seu jeito humano nascendo, o aprendizado de uma sensação: a dor, o amargo, um riso, uma geléia de amora tocando a ponta da língua. Os cheiros que a cercavam naquela cidade: o canavial que se estendia por todo o redor do céu, em circulo, a dama da noite, os lampiões e as fogueiras e o cheiro de queimado e fuligem que invadia seu nariz toda noite. No caderno, Beatriz escrevia tudo. E conhecia também, porque o conhecimento não era dado de graça, tampouco era uma concepção essencialmente humana – a literatura se fez descobrir por ela. Um anjo, ou mil. As palavras, esses doces mistérios, ainda não os deciframos como queremos. Que valor tem a literatura? É sempre um grito, o que varia é seu sentido: para fora ou para dentro, leve ou pesado, e ultimamente Beatriz gritava para dentro porque com o lado de fora estava leve, vazia, descarregada, totalmente cândida.
Aos poucos, Beatriz foi descobrindo, pelas ladeiras e se guiando pelos caminhos que aquelas casas contavam, à estação de trem, e agora ela podia sair dali sozinha. Não mais esperar por aquilo que seria: um resgate? Uma fuga? Uma evasão. Sobre sua cabeça um céu tão azul que doía nos olhos, e um verde que se estendia pelos canaviais à sua frente: decidia, cruzaria o sétimo círculo do céu.
E encontrara a estação de trem vazia, desativada quase, e se não fosse essa suave esperança que se desfazia na boca de Beatriz em sair daquele lugar, ela talvez voltasse a sua espera eterna. Sentada, descalçou os sapatos e esperava agora, um trem. A nuca quente, os ombros ardidos, sobretudo naquela estação havia uma sombra e isso já lhe confortava: um sinal. Aquela tarde era igual à todas as outras que Beatriz passara no céu: quente, com uma brisa acolhedora – as casas, ao longe, telhados e parapeitos, contornos coloridos, centenas de anjos correndo e brincando.
Ir embora é sempre uma escolha, pensou Beatriz, o queixo apoiado, olhos cerrados. Mas ir embora depende do referencial: porque ir embora para quem chega é simplesmente chegar: sair do sétimo céu e atravessar todos os infernos adiante seria uma fuga se visto do céu – mas seria uma chegada se visto da terra. E era escusado, aquela altura, saber se céu ou terra eram meros referenciais. Primeiro porque, sendo ali sua morada, um céu de toda vida, com canaviais, anjos, igrejinhas, casas de pau a pique, roupas brancas no varal, aquilo era sobretudo um passado. E segundo porque à sua frente, trilhos de ferro e trem, insegurança, lhe esperava um destino, com ou sem um Dante, sozinha, na imensidão desassossegada que lhe diziam ser o inferno. E este era agora seu futuro.
As palavrinhas que corriam soltas caderno afora, linhas preenchidas, e Beatriz já não sabia o que fazer com elas. Toda palavra tem uma história por trás de si – toda mão que a escreve é uma trajetória. itinerante, uma nostálgica maquina que insiste em registrar o inregistrável
Beatriz se cansava daquele sol e daquele céu azul que agora era pesado já sobre sua cabeça – por uma ou duas vezes piscou e os olhos carregados se fecharam mais do que se abriram: uma mala caiu. Mas ao fundo, e com o som do silvo agudo ela despertou rapidamente, vinha no final daqueles trilhos que se estendiam por todo o cruzamento dos sete infernos, um trem. Que acabava de parar em sua frente, naquela estação, e então quando Beatriz embarca ela deixa no banco da estação o caderno porque não faria mais sentido, nem seria mais possível, registrar um futuro desconhecido.
sábado, 31 de julho de 2010
Azulejo
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Os ossos do ofício
No futuro (muito distante) depois de um consenso descuidado ou de um descuido consensual se formará, após a aprovação do Congresso Nacional, o Sindicato das Profissionais do Sexo. O Sindicato terá como objetivo regulamentar e aperfeiçoar a profissão, visando reparar um erro histórico cometido pela humanidade com essa categoria do trabalho feminino; o escanteio à que a prostituição fora submetida durante toda a história sindical do século XX. À princípio, esta que fora e ainda será conhecida como a profissão mais velha dos mundos, trará consigo alguns empecilhos para sua regulamentação. Entretanto, após um breve período de confusão por parte das profissionais, haverá um cadastramento feito no Sindicato e elas receberão carteiras profissionais assinadas com direito à vale transporte, alimentação e férias. Haverá um problema: entre elas, que são amigas íntimas umas das outras ao passo que também são suas piores inimigas, nascerão intrigas e discussões à respeito de quais direitos cada uma poderia ter. Alguns clientes passarão a procurar apenas as sem carteira afim de não ter que pagar pelos benefícios. Para isso, o Sindicato estabelecerá a necessidade de uma habilitação para o exercício da profissão que segmentara as prostitutas em categorias de acordo com seu serviço (A para oral, B para anal, C para aquelas que atendem os casais, etc...). Surgirão cursinhos. Aulas de três dias bem como exame médico e psicológico que garante aos clientes poderem usufruir de profissionais bem preparadas com carteira assinada e classificação em sua habilitação (Perguntas como “Você é uma D?” durante a negociação se tornarão comuns).
Haverá um problema novo: a busca por um aperfeiçoamento nas categorias levará a um inchaço de profissionais de habilitação E cadastradas no sindicato (E = aquelas que dominam todas as práticas sexuais). A concorrência entre elas vai aumentar já que não haverá mais um motivo que destaque uma da outra.
Algumas universidades que já possuíam em seus departamentos de Antropologia núcleos de estudo acerca do sexo e da sua profissionalização irão, após um extenso projeto enviado ao MEC e uma discussão que permeará a imprensa por semanas e abalará os últimos pilares dos setores conservadores da sociedade, surgirá o primeiro curso de graduação em Ciências Eróticas e Sexuais, com habilitação em Meretrício e Cafetinagem. Com a proposta de um curso interdisciplinar, serão ministradas disciplinas nas faculdades de Saúde e História, e também de Artes Cênicas, buscando uma formação plural e abrangente. Aulas práticas (Kama Sutra I, Alongamento e tensão) e teóricas (História da prostituição no Brasil e Economia para não-economistas) serão combinadas igualmente, visando a construção de profissionais que sirvam ao mercado plenamente. Nascerão garotas de programa intelectuais. Lerão Flaubert, Balzac, Dumas e o Marquês de Sade. Conhecerão suas histórias bem como as de suas antepassadas. Novos núcleos de pesquisa se formarão nas universidades e quando o assunto já estiver saturado para a graduação, algumas moças reunidas irão propor a criação de curso de Mestrado e Doutorado, visando especializações de serviços a serem prestados.
O mercado se tornará promissor – donas de casa largarão seus maridos para investirem nessa nova graduação. O mercado se tornará também exigente: cada vez mais, as novas garotas de programa precisarão de mais e mais diplomações.
A essa altura, a primeira geração das prostitutas registradas já estará com a idade de se aposentar. E elas passarão a receber seus direitos: as férias perdidas e a aposentadoria. Indignados, os únicos setores conservadores da sociedade que ainda não estavam de acordo com esse processo, se espantarão em saber o valor que aquelas senhoras passarão a receber. Em pouco tempo, entretanto, mesmo esse setor conservador vai se render ao mercado do sexo e aceitá-lo como uma parte integrante da economia.
Os rapazes, entretanto, que também eram profissionais da área, em nada terão direito. Durante esses anos todos que se passarão, o Sindicato será administrado por mulheres que vão abominar a prostituição masculina, alegando que eles cooptam os seus clientes. Os senhores que foram, outrora, garotos de programa na juventude, vão cobrar seus direitos. Irão em busca de uma aposentadoria. De um plano de saúde. O Sindicato irá tentar escondê-los desse processo – primeiro negarão seus direitos para, à seguir, se mostrarem compreensíveis e iniciarem um processo sem fim.
A concorrência para entrar nos cursos de graduação ira aumentar e a escolha por Ciências Eróticas e Sexuais será um consenso entre as meninas que estiverem em dúvida entre Direito e Administração. As famílias se orgulharão mais da filha que entrar nesse curso do que da irmã que será aprovada em Medicina. Aos poucos o Sindicato vai ganhar um papel de destaque dentro das universidades e se formarão lideranças. À partir daí, as mulheres formarão uma cruzada contra a sua ausência política nos bastidores do poder – em pouco tempo, portanto, elegerão a primeira presidente ex-prostituta, Valentina Souza, ex-presidente e fundadora do Sindicato.
A prostituição regerá o país. Não haverá mais pudor em se tocar no assunto e isso vai inclusive causar uma mudança na língua e nas expressões: quando alguém for chamado de filho da puta vai se sentir honrado e a puta que pariu será um lugar sério, um museu quiçá. .
Aos poucos, novos ditames sociais serão criados: as prostitutas irão abominar os homens que não as querem. Todo homem, mesmo casado ou pai de família, terá que usar de seus serviços. E isso será socialmente aceito – o homem que não sair com, no mínimo, uma prostituta por semana, será vexado, duvidarão de sua sexualidade e potência. As suas senhoras, por sua vez, também terão tomado contato com a prostituição já durante uns anos; suas filhas estarão se graduando nessa profissão. Quem não for adepto da prática vai, inicialmente, ser alvo de comentários. E depois vai ser apontado na rua: retrogrado, conservador, moralista.
As igrejas não sairão ilesas desse processo. As imagens de Jesus Cristo serão derrubadas e a Nossa Senhora que repousava até então virgem e serena será substituída por uma imagem de Maria Madalena, não arrependida dessa vez, mas orgulhosa e nua. E as religiões mudarão, todas, e até mesmo a Bíblia será reescrita.
Valentina Souza se reelegerá uma, duas, três vezes. Mesmo sendo anticonstitucional. E, em seu terceiro mandato, quando o Congresso se tornar a casa de todas as mulheres oriundas do Sindicato das profissionais do sexo, conseguira aprovar uma ementa que torne a prostituição, dessa vez, uma lei. De uma condição abjeta, inicialmente, tendo passado por uma profissão legalizada, agora a prostituição será obrigatória para todo e qualquer cidadão.
E o mundo se tornará um grande bordel.
quarta-feira, 21 de julho de 2010
A sabedoria
Depois o pai começaria o discurso. Diria que na faculdade de sociologia se reuniam subversivos. Regina argumentaria e, quando ensaiasse se levantar, o pai se viraria e apontaria o dedo em sua cara. Regina então iria se acomodar na poltrona e o pai andaria de um lado para o outro da sala. A mãe, muito emotiva, começaria a chorar e se perguntar o porquê de não ter uma filha como as outras. O passado iria começar a se desenrolar como um tapete áspero aos pés descalços – eram uma família muito limpa e andavam de pés descalços dentro de casa para não trazer as sujeiras da rua – e a mãe iria mais uma vez se lamentar do casamento perdido por Regina. O pai diria que aquele era um rapaz tão bom, tão honesto, com um emprego garantido. Que Regina deveria ter sido expulsa de casa quando negou o casamento. Que Regina não sabia nada da vida porquê era jovem demais. Que Regina lia demais e se deixava influenciar por idéias de mulheres perdidas e de pessoas que nada tem de compromisso com a vida real. Que Regina não iria freqüentar o curso de sociologia porque deveria continuar como era: professora, de crianças. Que se não fosse daquela forma era melhor que Regina fosse morar com a avó, em Barbacena. E Regina mais uma vez, com a alma indignada, iria ficar vermelha, e iria se arrastar até seu quarto, e se debruçar em sua cama, e montar um plano em sua cabeça para sair daquela casa. Os pais, na sala, iriam ligar a televisão e se lamentar pela filha. A mãe iria fungar em um lenço bordado. O pai iria enlaçar a mãe, por a sua mão no ombro da mãe e apertar, porque era assim que demonstrava preocupação e carinho. A mãe, cujo tempo de vivência com o pai já lhe trouxera um certo aprendizado, iria ficar agradecida pelo carinho e desejaria que Regina encontrasse um homem como o pai.
Mas Regina havia se cansado daquela cena que se repetia à cada decisão sua. Desde que recusara o pedido de casamento, começaram a lhe tratar como um perigo eminente aos bons costumes daquela casa. Começaram a lhe olhar torto pelo bairro, pelas ruas. Desde que viram Regina com outros homens que não seu quase noivo, começaram a desconfiar de Regina pelas ruas do bairro. Os vizinhos comentavam com a mãe, que chorava, porque era muito emotiva. E era escusado deixar aquela casa porque dependia daquelas pessoas e porque gostava delas. Queria, no mais íntimo de sua existência, que as pessoas lhe entendessem.
E na última reunião do comitê onde estavam discutindo as novas diretrizes, os novos passos que seriam dados pelos juventude engajada, Regina havia acabado de negar o pedido de casamento, e se encontrava desolada. No meio dos panfletos e da desolação, encontrou Cláudia, que era uma moça loira e bonita, também do comitê, e da faculdade de sociologia. E Regina e Cláudia se deram bem desde o primeiro instante e quando Regina lhe disse que só tinha um magistério mas morria de vontade de entrar para a faculdade de sociologia, Claúdia lhe deu o maior apoio que alguém poderia lhe dar. Excitada, Regina seguiu os passos de Cláudia e entrou na faculdade sem que ninguém soubesse.
Mas ficava claro que sabedoria não estava em se expor. A sabedoria era algo como uma traça, que ia comendo os arredores de um papel imundo, de um relatório de denúncia. O ataque frontal, o verbo atravessado, nada disso era eficaz. A frase que agredia, por mais correta que estivesse, era como lançar o corpo frente à uma bala disparada, só esperando pelo alvejamento e por um sangrar incontínuo. Fosse uma vitória, um motivo de orgulho, Regina descobria que era ineficaz. Não queria ser um corpo alvejado e corajoso. Queria ser um porta-voz ativo de cadência conhecida.
E Regina soube desde então que a sabedoria consistia em ficar quieta. E passou a evitar expor sua opinião como quem tem um doce escondido no bolso – decidiu que era melhor saborear sua opinião quando sozinha, em um quarto fechado, tirando-a do bolso e desembrulhando lentamente o celofane que a envolvia do que ofertá-la à quem não apreciava seu sabor. Mesmo para dividi-la: iria somente dividir com quem tivesse tanto gosto por aquilo quanto ela. Já não dava mais risadas, mas sorria complacente. Lembrava das palavras de Cláudia que costumavam dizer “faça voz de burra” ou “voz de burra é uma coisa que funciona!”. E com os olhos arregalados, as sobrancelhas erguidas, mordia o lábio inferior numa discrição que parecia sem querer mas que fora detalhadamente planejada e o pai consentia. A mãe lhe servia o café na xícara e prevenia para que tomasse logo. O café vai esfriar, Regina! Dizia e ela assentia com a cabeça. E sobretudo, resolveu, deveria pedir desculpas. Diria à mesa que ela era uma filha ingrata. Diria que não dava valor aos esforços da família. Diria que os deveres dos filhos são honrar os pais. E os pais aprovariam e Regina novamente sorriria, complacente. Porque depois de conhecer Cláudia, Regina se tornaria uma mulher sábia. E a sabedoria, Regina iria descobrir, consiste em ficar quieto.
Eram uma família feliz, finalmente. Depois de tantos tumultos, de uma filha que bambeava no meio fio entre uma vida correta e a subversão, podiam se sentar na mesa da sala de jantar e almoçarem em paz, aos domingos. Agora Regina trazia a amiga do grupo de jovens para a casa, uma moça boa chamada Cláudia, que também era professora de crianças e ensinava catequese na sexta-feira de manhã. Se trancavam no quarto após o almoço com metros e mais metros de tecido branco – saíam no final da tarde. Um dia a mãe perguntou para que era aquilo e Regina lhe disse a verdade: estavam bordando um enxoval. Regina decidira se casar, finalmente. A mãe encheu-se de felicidade, não podia acreditar, os olhos marejados, a panela no fogo, foi deixando tudo de lado e abraçou a filha e também a amiga da filha, que finalmente botara algum juízo naquela cabeça.
Traziam uns livros. Livros grandes, meio pesados, autores estrangeiros, alemães, a mãe não conhecia direito mas ficou feliz em saber que Marx era um profundo analista da importância da família. Regina então lhe contou que de acordo com ele o casamento era um bem sagrado e precioso. O pai apenas assentia, com orgulho da nova fase, e pensava consigo que era grande responsável por essa evolução porque sempre deu o exemplo.
O tempo passava e o comitê resolveu cair na ilegalidade. As faixas que Cláudia e Regina passaram tardes inteiras pintando com mensagens que iam contra a opressão já não podiam mais ser utilizadas em passeatas. Foram queimando documentos, identidades, e não sabiam o que fazer com Ricardo, um dos líderes da diretoria, membro importante e já procurado pela polícia política. Foi Cláudia quem sugeriu mas Regina quem realmente elaborou o plano e encarou a situação como se deveria ser encarada: com sabedoria.
E o pai não pode conter dessa vez seu orgulho ao receber em sua casa o noivo da filha, que falava alguns idiomas e trazia em sua mala diversos livros. De longe se percebia que era um homem culto, um homem letrado. E Ricardo inspirava tanta confiança naquela família que os pais, por mais que achassem equivocado que o noivo fosse se hospedar por ali, até aceitaram que Ricardo ficasse na casa deles por aquele tempo em nome do conforto do rapaz: Regina lhes confidenciou que Ricardo estudava no Rio de Janeiro e estava de férias da faculdade, mas que não se dava muito bem com a família. Tinham muito dinheiro, mas Ricardo insistia em fazer a própria vida. O pai achou digno e honesto. A mãe ainda teve medo de que comentassem, mas se acalmou assim que Cláudia afirmou o contrário. No fundo a mãe concordava com ela, com a alma sorrindo, que quem comentasse tinha era inveja do noivo rico de sua filha.
E se Regina não tivesse virado uma mulher sábia, a polícia aquele dia iria invadir sua casa em busca de provas de envolvimento seu com o comitê. E a mãe iria olhar ressabiada, e o pai diria que sempre soube que Regina lhes traria um grande problema. E os dois iriam olhar decepcionados a uma invasão no quarto de Regina e a exibição de panfletos de mimeográfo espalhados em sua cama. Se Regina não tivesse entendido o que era sabedoria, a mãe não teria dito ao policial que a filha estava para se casar e que arrumava, no quarto, o enxoval, com a ajuda da amiga. A mãe também não comentaria, para completar o quadro, que a filha estava lendo todo tipo de livro sobre casamento e que contava com a ajuda de uma amiga para arrumar os preparativos. E a mãe não teria oferecido um cafezinho aos homens brutamontes que haviam entrado em sua casa. E a mãe também não concluiria, por dedução, que aqueles eram seguranças que a família rica de seu futuro genro havia enviado para verificar onde ele estava morando. E não teria também tanta cautela na hora de escolher os melhores biscoitinhos de maisena do pote para servir junto com o cafezinho. E os homens não teriam ido embora, acreditando que aquela era uma casa de respeito e que pela primeira vez haviam se equivocado. E foi graças a essa sabedoria que Regina não foi presa, torturada e morta.
quinta-feira, 15 de julho de 2010
domingo, 20 de junho de 2010
Clara
Conheci Clara quando esta precisava de um tempo para escrever. Escrever um romance, ela queria, e queríamos coisas juntos e portanto nos unimos por esse objetivo em comum, como um fio em cuja ponta cada um aperta forte a mão: um fio, um romance.
Clara contou para mim de seu antigo parceiro, um casamento frustrado que não ocorrera em uma igreja mas em uma editora. Eles se conheceram quando ela tentava publicar uns poemas, a editora recusava mas ele a conquistara dizendo que eram poemas bons, publicáveis, que incitavam o que havia de liberdade nas pessoas – que fariam por libertar a liberdade contida, guardada desde Woodstock no coração de cada um. Sentiu que se completavam e foram viajar de carro por aí, ela largou a faculdade e ele a seguiu, ambos em busca de algo que motivasse seu romance. No começo éramos mais radicais, penso, ouvíamos Janis Joplin em som alto, no carro, um fusca velho que mais parava do que andava e não hesitaríamos na hora do refrão, em soltar um grito estridente e rouco – aos poucos, porém, aos poucos passamos a sentir vergonha de gritar com ela e nos restringíamos, assim, a cantarolar o Kozmic blues num sussurro desafinado, cada vez mais silencioso, silencioso, silêncio... Nessa época eu passei a me contentar em fechar os olhos e viajar pelos solos de guitarra, imaginando que eu era feliz. Então, pensei, então hoje você me procura com esse intuito de escrever seu romance? Poderia questionar, discutir, dizer que não estava ali para somente ajudar mas queria também ser ajudado, dizer que tinha muito mais coisas a oferecer para ela e para qualquer outra mulher que passasse por aquele banco daquela padaria naquela manhã, que não era meramente isso que todos viam em mim, um repertório de palavras e frases prontas. Mas não. Me entregava, então, desde aquele momento, à Clara e à seu projeto, e decidi que iria completar os espaços vazios em seu livro, iria preencher seus parágrafos e juntos iríamos criar aquele romance.
Nos mudamos então para um apartamento no centro da cidade, razoável, paguei o aluguel por um mês somente porque não acreditava que o projeto todo duraria muito mais que aquilo, e seguimos em frente. Quando abri a porta do elevador, Clara segurava apenas uma caixa nas mãos onde residiam poucas coisas, objetos pessoais que não preencheriam sequer uma esquina das paredes da nossa nova morada. Convidei-a para entrar e ela entrou, lisonjeada, e ao fechar a porta nos encaramos e percebemos que não sabíamos muito bem o que fazer, ninguém sabe, afinal de contas, nesses primeiros encontros cujos objetivos estão bem delimitados tudo fica muito difícil. Como um casal que combina que vai se amar, encontrar-se naquele estado e sentar-se no chão para começar a escrever qualquer coisa que fosse, um poema, uma lauda de um artigo, tudo seria tão artificial e irrisório e colocaria tanto a perder nossa idéia final que decidi primeiro por oferecer à Clara um café. Quer um café? Disse, e ela assentiu com a cabeça, enquanto investigava o espaço ao nosso redor e se encaminhava para a janela.
Assim que colocou a primeira folha na máquina de escrever, sentou-se no chão de pernas cruzadas, fez um coque displicente no cabelo (trajava uma camiseta grande larga e branca) passou a calmamente esmurrar as teclas daquela máquina e foi assim que nosso romance começava, com a seguinte frase: deveria ser um crime o desamor ou a desunião dos seres, deveria ser um crime zombar do amor e da dedicação dos outros.
Entreguei sua xícara e Clara pegou com sua mão esquerda, sorrindo levemente e dizendo obrigada. Sentei-me ao seu lado e li as primeiras linhas escritas por ela. Não sabia direito o que dizer, não sabia se deveria dar palpites, mas naquele momento descobri que não era assim que se fazia um romance. Um romance, pensei, para ser vivido, teria que ter as mãos de cada um inseridas em sua construção. Não as mãos solitárias, os dedos isolados, mas as mãos conjuntas, simultâneas, até mesmo confusas, batendo teclas ao mesmo tempo sem que houvesse a necessidade de se dizer, premeditadamente, o que cada um deveria escrever.
Não creio que Clara compreendeu meu parecer de imediato. Franziu a testa ao me ouvir dizer isso, levantou-se com a mesma propriedade que todos os artistas se levantam e se dão o direito de saírem de cena e foi para um outro cômodo do apartamento (que, por não ter mobília nossa, poderia tanto ser uma sala quanto um quarto).
Ao final de nosso terceiro dia naquele apartamento, eu já me irritava com Clara e passara a enxergar todos os seus defeitos – as unhas roídas até a base, as cutículas arrancadas com os dentes que sempre deixavam feias marcas sanguinolentas ao redor de seus dedos, a mania de tossir sem colocar a mão em frente à boca e principalmente: o absurdo hábito de não escrever até o final da linha nas poucas folhas de papel que dispúnhamos para escrever seu romance. Clara ia escrevendo, simplesmente, sem sequer pensar em economia de papel e quando lhe ocorria que era bom mudar de linha, ela mudava, sem lógica, sem uma decisão premeditada. Eu fora delegado a um mero expectador de seu processo criativo – às vezes, quando tinha uma dúvida na grafia de uma palavra ou na colocação de um pronome, ela ponderava, roia as unhas e depois o topo de um lápis que usava para prender os cabelos e somente quando o lápis preto soltava cascas de verniz úmidas por sua saliva em seus dentes, ela me fazia a pergunta: o que devo usar aqui? Ia tecendo uma colcha de letras. Cada batida que eu ouvia do teclado no papel era como uma agulha transpassando as fibras de um tecido e o som emitido pela maquina, por mais que àquela altura eu já estivesse enjoado da companhia de Clara, se tornava músicas para meus ouvidos aflitos de música. Eu sempre escrevi acompanhado de som, disse à ela, ao que ouvi como resposta: eu também.
Clara havia trazido junto de suas tralhas alguns discos de vinil e no fundo do único armário que havia sido entregue dentro do apartamento quando eu o alugara, estava um empoeirado toca-discos de 87. Amo tua voz e tua cor, e teu jeito de fazer amor. Dizia a música que passamos a ouvir, um vinil antigo de Kleyton e Kledir.
No final da tarde, Clara sempre parava de escrever e ia para a cozinha preparar um chá ou um café. Mesmo nos dias mais quentes não perdemos esse hábito – o sol entrava pela janela e tornava o apartamento uma estufa. Lá pelas cinco da tarde os raios inundavam o chão de assoalho e parecia que estávamos dentro do próprio sol – eu via tudo em laranja, inclusive a pele morena de Clara que ficava mais morena e mais bonita à cada tarde. Enquanto ela passava o café ou coava o chá, eu aproveitava para revisar seu texto e acrescentar coisas, linhas, redigia mais alguns itens em seu romance e acrescentava, sem sua permissão, o que eu tinha de especial para dar à literatura: o lirismo e a paixão que eu guardava, toda comigo, sobretudo essa falta de opção que eu também tinha, de não poder viver sem a literatura e de enxergar naquelas linhas todas preenchidas e naquelas palavras, união de letras, não um processo de construção mas sim de exorcismo. Sentia Clara em cada letra, assim como ela deveria me sentir em cada correção minha. Aos poucos poderíamos nos conhecer por meio daquelas palavras, escritas, impressas em um papel que também aos poucos se acabava, e fazer um romance se tornava muito mais do que uma tarefa diária, um trabalho, se tornava a reação espontânea de nossos corpos e de nossas mentes.
Foi no sétimo dia em que Clara pensou em desistir: passou o dia inteiro em frente à máquina e não saía nada de dentro de si. Tentei fazer com que ela se acalmasse, apliquei em seus ombros uma massagem chinesa, ela fumou dois cigarros de uma só vez, depois olhou para a janela angustiada e disse saber que não era capaz. Clara já havia começado a escrever dois livros anteriormente – eu sabia apenas do primeiro, aquele que a fizera conhecer o editor que lhe prometera a rota 66 da geração beat. Mas o segundo fora um livro de poemas que chegou a ser publicado e não fora lido por ninguém. Ela me revelou isso enquanto se aninhava em meu colo e me deixava constrangido – há tanto tempo que o afeto para mim era apenas uma palavra, um substantivo composto por cinco letras que eu usava em muitos contos, que eu já não sabia mais como ele funcionava na prática. Em sua bolsa ela guardava um exemplar desse livro de poemas mal-sucedido: uma capa rosa, uma edição velha. Um presente do editor para mim, quando me deixou, disse ela. Escrevi esses poemas dia após dia, quando terminamos nosso encontro de vez, e mandei para que ele lesse. Incapaz de reagir com a reação de um ser humano qualquer, ele disse que iria publicá-los. E assim o fez: foram um fracasso. Em uma folheada no livro, pude perceber que eram poemas primários, coisa ruim mesmo, mas não queria dizer isso ou sequer acreditar nisso porque na minha cabeça bastante confusa não tinha como um poema, esse jato de palavras que sai não da boca, mas de uma mão em chagas que só possui como alternativa escrevê-lo, ser ruim ou ser de qualidade duvidosa. Um poema não tem explicação ou julgamento, pensei comigo. É uma verdade, apenas, uma verdade que se for feia, mal feita, revela apenas isso que somos: feios, mal feitos.
E no fundo Clara era tão solitária que deixava isso transparecer em suas mãos sempre em busca de algo para segurar, seus dedos tão propícios a se enroscarem em curvas, em canos, em cachos do meu cabelo, a minha cabeça deitada em suas pernas, as lágrimas de Clara que escorriam pelo meu cabelo e descreviam um percurso peculiar por entre meus cachos e escorregavam, por final, por minha testa, e continuavam cada vez menos espessas e encorpadas até minha boca, onde eu as provava e concluía: a dor de Clara era uma dor salgada.
Foram duas semanas em que nos trancamos naquele apartamento, dedicados à fina arte da escrita, sem móveis, cercados apenas de alguns de nossos livros preferidos, uma vitrola com todos os vinis antigos, musica antiga, um fogão, algumas garrafas de vinho e, sobrevivendo à base de macarrão instantâneo, nos pusemos a escrever a quatro mãos aquele que seria o romance de nossas vidas, livremente inspirados pelo exemplo mais belo que foi o de Jack Kerouac, que após uma viagem do exterior para o interior também se trancou em um apartamento por algum tempo e se pos a escrever aquela que seria a grande obra de sua vida. Digo isso porque aos poucos seu romance foi se tornando meu, ou, tudo que havia de meu ou dela foi se tornando nosso, e quando Clara passava por seus momentos hiatos eu a abraçava primeiramente e em seguida a afastava da maquina de escrever, com delicadeza, com sutileza e cuidado, e ia esmurrando as teclas na tentativa de imitar seu modo de dizer aquilo que queria. Ao final das duas semanas, nos deparamos com trezentas e oitenta e cinco páginas datilografadas e revisadas, empilhadas ao lado da máquina de escrever no assoalho ensolarado do chão.
Terminamos o livro no final da tarde e ficamos um momento em silêncio, observando o sol mais uma vez invadir o apartamento e nos fazer suar dentro daquela estufa de luz que se tornava a sala de estar.
Quando saímos do apartamento naquele que seria o décimo quarto dia de nossa estada, vimos nas ruas de fora um outono mais ensolarado que aquele que havíamos deixado na porta quando adentramos nosso espaço de criação. Nossa primeira reação foi encontrar uma banca de jornal, afinal Clara queria comprar uma revista e eu precisava de cartões telefônicos, e logo após isso iríamos para uma padaria de esquina tomar um pingado e um pão na chapa (o nosso café acabara no oitavo dia e desde então eu passava as manhãs sonolento sem conseguir despertar direito, até que Clara jogava em minha cabeça uma balde de água fria, simplesmente sussurrando ao meu ouvido: acorde).
A surpresa de Clara foi maior ao não reconhecer a dona da banca, e depois perceber que era a mesma mulher de antes, mas com os cabelos levemente grisalhos e curtos, as rugas que ela já tinha na época em que o cabelo era completamente tingido de ruivo se transformaram em sulcos fortemente vincados ao redor de sua boca. Os meninos que brincavam na rua quando entramos no apartamento, duas semanas atrás, e que ouvíamos constantemente de nosso andar, ao retornarem da escola, agora já eram homens feitos, uns freqüentando a universidade e outros trabalhando. Abismado, segui até a padaria com Clara em meu encalço. O senhor simpático do balcão já não estava mais lá – fora substituído por um novo funcionário, um cearense sorridente com um forte sotaque proeminente. Morreu, disse-nos, ao perguntá-lo sobre o que havia acontecido com o senhor simpático de antes. Clara estava intrigada, mas eu me encontrava tranqüilo. Sabia que em duas semanas muita coisa podia ter acontecido. O tempo passou, ela me disse, eu respondi que sim, que havia passado, mas que ela não precisava ter medo porque tinha agora seu livro pronto, debaixo do braço.
Livres de qualquer compromisso porque entre Clara e eu o único vínculo construído fora rompido assim que digitamos o ponto final de seu romance, me senti livre para perguntar o que antes fora inquestionável. É para ele, não é? Perguntei. É para o editor que você escreve. Para provar que era capaz, não de escrever um romance, mas de vivê-lo, em sua intensidade, de transcrever para o papel cada segundo gasto em frases soltas, em beijos, cada segundo gasto na cama, as mãos entrelaçadas, os dedos, é para ele que você escreveu esse romance. E Clara erguei seu rosto bastante vermelho, um rosto que agora eu percebia que também sofrera as ações do tempo, tinha vincos ao redor da boca também e os cachos eram prateados dessa vez, sim, disse, é para ele que eu escrevi.
Assenti com a cabeça. Não havia muito mais o que fazer se não aproveitar o restinho de tarde e o magnífico sol outonal daquele dia e por isso eu deixaria Clara sentada no meio fio enquanto ela lamentava alguns remorsos restantes, e ia relendo seu romance para pode entregá-lo, intacto, ao seu editor. Pensei em algum boteco do centro da cidade, mas talvez para a hora eu precisasse mesmo do meu café, e de companhia, quem sabe alguns desses senhores que não saem das padarias do centro. A primeira página, entretanto, estava comigo. Não sabia bem porque, nem entendia a finalidade, mas antes de sairmos do apartamento foi Clara quem a retirou cuidadosamente do monte, a dobrara em quatro e a enfiara no bolso de meu paletó. Olhei para trás com cuidado – as lágrimas de emoção corriam soltas por seu rosto sardento e eu via um sorriso que levemente se esboçava. O sol era forte, seu corpo era por demais laranja àquela hora da tarde e eu preferia nem me lembrar das horas e dos dias em que eu passara com aquela garota, trancado no apartamento. Precisava por minha vida em ordem, dessa vez, e o primeiro passo era cancelar o contrato com o proprietário. Abri a folha que guardava no bolso do meu paletó e li com toda atenção, pensando que aquilo que se passara ali dentro fora um sonho: deveria ser um crime o desamor ou a desunião dos seres, deveria ser um crime zombar do amor e da dedicação dos outros.
terça-feira, 1 de junho de 2010
Intimidade
Ao som de 'Pérola Negra' do Luiz Melodia, os atores entram em um palco vazio com alguns elementos de casa (talvez fotos jogadas no chão, uma máquina de escrever creio que seja uma boa ideia, uma vitrola de onde pode estar vindo a música do Luiz Melodia. Uma luz amarela seria ideal, e talvez ao fundo a ideia de um cenário que represente janelas de um prédio, enfim, uma espécie de sala de estar de um imóvel que está pra ser alugado).
- Após você, adquiri hábitos de higiene. Depois da última vez em que nos falamos, naquele dia em que você estava de malas prontas pra se mudar, aprendi a lavar as mãos para me desprender dos vocês imanentes em mim. Lavei as mãos três vezes, e depois, passei a lavá-las uma vez por hora durante uns seis dias, e agora, cada vez que encosto em alguém eu lavo as mãos na ânsia de não levar esse alguém comigo, esses ácaros de alguém que podem ficar presos em minhas digitais.
- Eu também escovei os dentes e a língua. Escovo os dentes com vigor, esfrego a escova com força sobre minha língua até sentir um leve ardor, um descolamento de camadas, que é pra apagar um beijo, uma palavra que ficou perdida, pendurada sem ser dita nesse vão entre língua, dente e lábio.
- Estou assim, por um tempo, tentando há uns dias falar com você. Você me escapa. Ainda não inventaram uma maneira de apagar um pensamento. Creio que se lavar a cabeça com um xampu forte, um xampu ácido, vou conseguir aos poucos apagar aquela tarde em que passamos juntos, os três, deitados sobre o mesmo colchão. Mas está certo que naquela tarde eu desejava você e ela da mesma maneira, o que me excitava mais era estar ao mesmo tempo com vocês naquele colchão.
- Mas agora, as coisas mudaram?
sábado, 22 de maio de 2010
Morangos Mofados
It doesn't matter much to me.
"No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se movia. Era dentro disso que precisava mover-se, sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo - e queria? Enumerava frases como: "é-assim-que-as-coisas-são" ou "que-se-há-de-fazer?", ou apenas "mas-afinal-que-importa?". E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofados, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta. " (Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu)
domingo, 16 de maio de 2010
Possessão
(ou a transformação por Twitter)
3:20. Começa a possessão pelas pontas das unhas, vai se espalhando pelo corpo todo, braços, pernas, se estende da ponta de cada pelo eriçado e penetra nos poros, vaza e escorre epiderme abaixo. Eram pequenas cápsulas desse algo negro que, quando inteiras, são inofensivas. Mas um banco onde estava quebrou e, ao cair, estouram as cápsulas e o seu conteúdo negro vazou e me invadiu por completo.
3:35. Os primeiros sinais dessa possessão de manifestam e causam minha inquietude. Olho para minha mão e ela já se encontra enrugada, as unhas meio escuras e frágeis. Ponho as mãos no bolso mais do que rápido para que os outros não vejam, mas não creio que era possível esconder. Talvez fosse pela distração dos outros. Os outros, eles, conversam e se amam discretamente pelos cômodos, e eu entro no banheiro a cada segundo para verificar indícios de minha possessão – uns fios brancos na sobrancelha, bolsas que se formam, sutis, sob meus olhos. Está bastante escuro, madrugada, e todos os outros se encontram um pouco bêbados, creio que não perceberão.
3:39. Nos deitamos na cama de casal e os outros dois conversam sobre amenidades. Tento disfarçar a possessão virando de bruços porque sei que minha cara a essa altura já demonstra indícios claros – uma das minhas mãos já se encontra parcialmente negra e manchada, as marcas da velhice e da idade. Tenho vontade de chorar, mas não posso fazer isso ali, descaradamente, porque chorar é um crime tremendo naquela circunstância. Por isso desço as escadas rumo ao jardim, já vazio dos outros, mas não tenho coragem de ficar sozinho porque sei que assim que fizer isso, a possessão se dará por completo. Volto pra cama, falo alto, converso sobre coisas diversas afim de mantê-los acordados – quem sabe se, acordados, os outros impedem que esse processo se dê por inteiro?
4:00. Deixei os outros dormindo. Todos também dormem, amados, e eu penetro a escuridão da rua sem saber para onde ir, que caminho tomar, a forma negra que se sobrepõe ao meu corpo me torna invisível naquela negritude estendida pelas avenidas. Desobedeço umas indicações, tomo outras, e quando percebo estou perdido e isso estranhamente me excita. Sinais evidentes de uma possessão semi completa,
4:22. Resolvo ligar para pedir ajuda já sabendo da ineficácia. Os outros dormem e deixaram dormindo consigo uma pessoa, jovem, conhecida, e ao ouvirem a voz de um ser absolutamente peculiar no telefone, certamente pensarão que é trote. Um atende, não reconhece a voz – ela treme porque assim faz o corpo do possesso, de medo, de frio, de angústia acumulada sendo liberada em jorros vertiginosos. Desligo o telefone porque não adiantava mais fugir daquilo.
4:40. Me encontro completamente possuído. A sensação boa que é se deixar levar paga qualquer dano. Ando agora encarando a todos, peito inflado, um queixo erguido e violento, espero não cruzar ninguém. Resolvo ligar mais uma vez e ao que o outro diz alô e eu abro a boca para responder, escuto um latido que se emite de minha garganta.
5:00. –
6:00. Durante o processo em que a possessão se completa, as patas me impedem de digitar sobre o teclado. Retornar a forma humana é duro, mas graças a Deus consigo atingi-la assim que o sol nasce e estendo, não a pata mas uma mão para uma lotação que vem adiante e ela para e eu vou embora sem que ninguém desconfiem de minha possessão.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Os casais e os sozinhos.
Descrença
domingo, 9 de maio de 2010
Perder tempo
quinta-feira, 6 de maio de 2010
O derramamento das faces
Quando era mais cedo, pensei verozmente em Daniel e em tudo que Daniel já significara para mim, em meu amor e amizade de irmão, e em como doía agora saber que já não era mais tão presente em minha vida e não sabia de minhas conquistas. Sismei em arranjar um encontro com Daniel, e talvez fosse possível se me prostrasse, à hora do almoço, frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, esperando que ele saísse com seus colegas portando uma bolsa a tiracolo e com os cabelos curtos, bastante baixos, uma diferença circunstancial frente aos cabelos cacheados que ele usava quando nos conhecemos. Mas havia uma preguiça em pensar nessa conversa que significa ir, aos poucos, derramando todas as passagens de minha vida que acontecera durante esses anos em que não nos falávamos – comentar sobre o teatro, as peças em cartaz, o prêmio do teatro universitário, e dividir com ele a recente viagem para Amsterdã.
Antes de cumprimentar os dois porteiros, Beatriz Castaneda vira-se para mim e pergunta se eu não iria demorar demais para chegar em casa, posso chamar um táxi, diz, e eu recuso, recuso veementemente, afirmando que chego em casa num instante após entrar no metrô. Minto. Possuo essa opção de mentir como uma dádiva, um remédio paleativo, e verter essa mentira sobre o roteiro que se desenha ao nosso redor, nosso espaço extralingüístico, é uma opção e uso-a com todo meu empenho. Chego em casa num instante, Beatriz, e subo as ruas em direção à estação, arfando.
Algo no rosto de Beatriz me lembra Carola. Depois que partiu, vejo Carola em todos os instantes, em rostos alheios, a face derretida que pinga sobre outras diversas faces, mas algo no rosto de Beatriz me lembra Carola, seu nariz meio turco, a pele branca, Beatriz me dizia que era judia e eu acreditava piamente porque fazia sentido – ela costumava levar faláfs em potes herméticos para comer nos intervalos das aulas e morava em Higienópolis. Já havia desconfiado que Beatriz me lembrava alguém, mas talvez um espaço em branco em minha mente, desenhado ou apagado pela dor da ausência de Carola me impedia de entender essa ligação. Daniel, que se apagara juntamente com Carola, ia se desenhando sob o rosto de um outro colega, alguém cujo nome eu não sabia mas que sentava diariamente próximo a mim por algumas aulas. Conversamos algumas vezes e sua risada era igual, embora fosse um pouco mais moreno e tivesse os dentes tortos. No caminho até a casa de Beatriz, pergunto se ela conhece aquele rapaz que sentava na fileira da frente, e ela diz que sim, ele mora em meu prédio, diz ela, por que? Não é nada, lembra um amigo meu. Ela vira a cabeça para a janela do ônibus e, de perfil, ela me remete a Carola ainda mais, os detalhes hebraicos de sua boca, seu queixo, mas Beatriz possui os cabelos lisos, um tom de castanho que beira o loiro, e era escusado pensar que Beatriz parecia Carola porque quando Carola virava-se de costas para mim ou mesmo de lado, meu nariz era logo afagado pelo cheiro floral daquela massa de cabelos ruivos e cacheados, presos de qualquer modo por um grampo de ponta descascada – os grampos, todos, Carola mordia com aflição antes de usá-los.
No primeiro vagão em que entro, vejo mudos (ou surdos?) conversando em libras e acho extremamente bonito. Tenho esse dom de achar as coisas bonitas, os gestos, entre dedos e sinais vou buscando as palavras e tento descobrir se são mudos ou surdos efetivamente. Havia alguém que comentara sobre o grito do afásico. As mãos me remetem às mãos de Carola, os sinais que ela também falava com seu irmão, este sim era surdo. É um afásico, dizia Carola, de fato não aprendeu a ler ou a ouvir, ele emite sons e os sons emitidos por ele eram como grunhidos, porcos ou cavalos indignados, gritando por fome, dor, desespero. Segundo Lyotard, o grito do afásico era a verdadeira comunicação, a expressão genuína do que há de mais transversal em nossa linguagem. O grito do afásico é genuíno, digo, e Beatriz me pergunta do que estou falando. Beatriz Castaneda, já te disse que parece demais com o grande amor da minha vida? Ela sorriu enquanto contava sobre seu namorado, o homem que tirou sua virgindade e por quem ela sentia ainda imenso amor. Não saberia se desvincular dele tão facilmente, a visão dos corpos estirados na cama lado a lado, a ansiedade do momento, magicamente Beatriz foi se desenhando para mim, pude perceber que além do rosto de Carola ela possuía também o riso de Carola no canto do lábio fino, umas sardas típicas de gente ruiva ou judia, ia tremelicando a medida em que ficava encabulada com minhas cantadas.
Ao me despedir de Beatriz Castaneda, subo a rua rumo ao metrô e atravesso três ruas iguais, sendo que na terceira encontro o rapaz que me lembrava Daniel, descendo pelas ruas com um cigarro aceso entre os dedos e me dá um sorriso tão amarelo quanto seus dentes, um sorriso afásico, um sorriso em libras, típico daqueles que não tem certeza se se conhecem, acho engraçadissimo o fato de que posso não conhecê-lo, tampouco saber seu nome, mas sei seu rosto há um tempo impreciso, desde que Daniel e eu brincávamos no hall entre nossos apartamentos, quando nem sonhávamos que um dia ele iria roubar Carola de mim, que um dia eu iria estar nessa rua reconhecendo sua face na face de outro homem com quem não tenho intimidade nenhuma. Tudo bem? Ele diz. Tudo certo, acabei de deixar Beatriz em casa. Ele se mostra consternado, talvez a pressa, ela me disse que vocês moram no mesmo prédio. Sim, é verdade, ele diz e acena um tchau, se despede, e desce a rua.
Descendo a escada, vejo os mudos (ou surdos) conversando em sinais e descubro que o tempo era uma grande bobagem. Não via Carola fazia meses, um ano talvez, e eu tentava veementemente não me esquecer dos detalhes de seu rosto, ele havia sido apagado em minha memória mas não em meu coração, eu enxergava as linhas que circundavam sua boca porém mais do que isso, eu enxergava as linhas que saiam de dentro dela, a continuação de suas veias, sua língua, eu ia buscando esses detalhes de Carola por entre as coisas, pelos lugares onde eu passava, enquanto os mudos continuavam a fazer sinais tão bonitos que eu ria, eu observava pelo vagão as pessoas e a memória de Beatriz Castaneda ia ficando avivada, mas aos poucos, como em um retrato que eu pudesse apagar e redesenhar, os cabelos castanhos de Beatriz Castaneda foram se encaracolando e tornando-se ruivos e eu me lembrava do dia peculiar em que eu subia a rua do colégio de freiras onde Carola estudava e encontrava Daniel – Daniel com o sorriso amarelo no rosto, pego em um lugar estranho, o que você faz aqui do outro lado da cidade? E Daniel assumia que viera encontrar Carola, vim encontrar ela, dizia, é melhor acabarmos com isso de uma vez, dizia cabisbaixo, incomodado, preciso ir logo, nós nos amamos, e naquele dia eu perdia minha mulher e meu melhor amigo.
Antes que o apito soasse e a porta fechasse, eu entendia como que por uma epifania que Beatriz Castaneda era Carola e o rapaz que morava em seu prédio era Daniel, as faces de uns derramadas sobre suas caras, os cabelos diferentes, aquisição de outros hábitos, Daniel com um cigarro nervoso em suas mãos, e quis gritar o grito do afásico, por que Carola e Daniel faziam isso então?, para que senão para estarem perto de mim?
Antes que eu pudesse correr, que pudesse retornar ao apartamento de Beatriz Castaneda, de alcançar Daniel na curva da rua, a porta se fecha e sinto que era tarde demais, mesmo que eu descesse na próxima estação e fizesse o trajeto de volta, mesmo que eu ligasse, algo se perdia, uma oportunidade. Me sento fatigado em um banco e observo, calmamente, os mudos (ou surdos?) conversarem entre si.
Uma massa de cabelos ruivos me chama atenção mais a frente. As pernas finas cruzadas, uma elegância de mulher magra e pequena, poucos seios, uma blusa lisa, a mulher sentada logo a frente que eu tento enxergar e parecia ser Carola me confunde. Meu coração dispara em um tom musical, um descompasso, penso estar louco e não consigo enxergar sua face porque do lugar onde estou os surdos (mudos?) se sobrepõem ao rosto da mulher ruiva. Logo ela se levanta, a face derramada, e descubro que ela não é Carola mesmo e também não é ninguém. O rosto de Carola fica despejado, vertido sobre uma bandeja incólume que se chamava Beatriz Castaneda.
(Volto para casa, esta noite, com uma sensação de vazio que me consome, e vou descendo pelas ruas, aos poucos, me desfazendo do que sobrava de mim em mim, me livro primeiro de um maço de cigarros vazio, depois de um par de óculos, depois abro a minha bolsa sobre uma cesta de lixo e deixo os papéis todos caírem com liberdade de meretrizes ou garotos de rua, e vou descendo mais e mais, vou deixando pelas ruas as provas desse crime irrefutável e passional que sou: eu. Antes de chegar em casa eu ainda abro minha carteira e queimo, junto de meus documentos, as fotos de Carola e de Daniel que eu guardava, e também a foto que eu tinha com Daniel, abraçado, em meu aniversário de quinze anos. Abro a porta de casa e, ao adentrar a sala de estar, passo incólume sobre as caras assustadas de meus pais que se perguntam, certamente, quem é esse estranho que invade nosso lar? Mas antes que eles se mexam, eu sigo até a porta do banheiro, adentro o ambiente, ligo a torneira e lavo de minhas mãos e pescoço os últimos pedaços que iam se soltando, levemente, de mim por mim, e ao erguer o rosto para o espelho não vejo nada além de uma face em branco).
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Elucidar.
(mas eu sempre me perco nas transcrições).
Porque no andor da vida comum, nunca estamos preparados para quando a poesia chega
(e quando ela chega, não respeita nada: atropela pelos olhos, as lágrimas, a alergia, gera uma tosse, um sono incomum, um fluxo de ar de dentro para eu mesmo e preenche qualquer falha do corpo com excesso de matéria)
terça-feira, 27 de abril de 2010
O parasita da Farmácia, a função de uma universidade e como seus alunos são selecionados.
terça-feira, 20 de abril de 2010
Blablação.
"Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer."
Existe, no teatro, uma técnica de improviso e treinamento de dicção e fala cujo nome é Blablação. A técnica consiste em falarmos com palavras desconhecidas, emitindo sons sem nexo algum, de modo que pareça que estamos falando em outra língua, totalmente desconhecida pelos ouvintes. Gesticula-se, esbraveja-se e por meio dos gestos o emissor busca uma compreensão do espectador uma vez que o entendimento verbal está totalmente comprometido.
Às vezes me sinto falando em blablação para os outros. Tento me fazer compreender, algumas frustrações, reclamações, dúvidas. Recebo, frequentemente, um sorriso amarelo em resposta ou – o que considero muito pior – uma resposta que em nada condiz com minha pergunta. Isso ocorre frequentemente quando converso com minha mãe, por exemplo, que tem o dom absoluto de interpretar errado tudo aquilo que digo.
Não posso, porém, culpar os receptores a minha volta. Cada vez mas eu sinto que a falha está em mim, no meu modo de dizer as coisas e tentar fazer com que captem meus sinais. Mas tampouco me culpo porque exprimir em palavras algumas idéias é tão difícil quanto entende-las. Isso tem ocorrido mais do que frequentemente quando tento explicar aos outros minhas propostas de reformulação do curso de jornalismo da ECA. A sensação que eu tenho, ao debater alguns tópicos fundamentais com outros colegas, é que entramos em uma discussão impertinente que muitas vezes sequer diz respeito ao ponto principal que eu, outrora, defendia. Por vezes esses questionamentos todos cansam, irritam, e o debate se torna um cachorro correndo atrás do próprio rabo – que, após inúmeras voltas, está tão cansado que desiste da tentativa.
Vontade não me falta em falar o que não é inteligível de uma vez. Chutar o pau da barraca para completar esse processo todo, passando a falar uma língua só minha. Sem necessidade de ser entendido. Se não me engano o Arnaldo Baptista fez isso certa vez – ficou sendo conhecido como louco, claro. Mas eu entendo, sinceramente, porque falar, falar, falar, repetidas vezes sem um fio de compreensão por parte dos que te cercam cansa. E muito! Ficaria tudo na intenção e a necessidade de se esforçar para promover a interpretação seria dos outros – não mais minha, agora sequer ligando para me fazer entender.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
Essa ingrata profissão.
De certo modo sinto que existe uma injustiça cometida por algum orgão invisível com o jornalista. Esse profissional que historicamente ganha mal, que muitas vezes é enxergado como um fofoqueiro da história, um inconveniente, é ainda por cima um cara que adquire todos os problemas da sociedade para si sem, entretanto, ter alguma vantagem com isso além de um hipotético alívio de consciência. Um outro amigo da faculdade diz que não se deve cobrar reconhecimento por atuação social, se não isso vira caridade. E concordo. Entretanto, trabalhar em prol de uma sociedade que mal valoriza seu trabalho é dose.
Chegando ao nosso prédio, fomos para uma aula que diz respeito à legislação, ética profissional, enfim. Segundo o professor, no meio de sua explanação, o intelectual é o ser que não possui acordos com as grandes empresas. "Desconfiem de jornalistas que fazem par com a grande imprensa", disse ele. De fato é uma questão decorosa, essa. Discutida em todos os debates dos quais tenho participado, núcleos de discussão sobre o curso, fórum disso, daquilo, enfim, ódio à grande imprensa. E eu realmente discordo da maioria das posturas que ela adota dentro das possibilidades midiáticas que nos são oferecidas. Mas aí, somado à todos os outros fatores que já inoportunam nossa profissão, aparece o fato de que os bons empregos disponibilizados no mercado estão contaminados por uma indecência mercadológica tremenda. Desse modo, não sobra muita saída ao jornalista, principalmente aquele formado em universidades públicas que tem constantemente o contato com os problemas sociais enfrentados por instituições do gênero.
Ora, somos mal pagos, nossa conduta é sempre discutível e discutida e quando temos a oportunidade de ganhar razoavelmente bem ou ter uma carreira estável, precisamos necessariamente deixar de lado qualquer convicção que nos tenha motivado (e que me motivou, sim, sendo bastante sincero, a escolher essa carreira) e pôr a consciência que nos resta à prova. Soluções para a prática do bom jornalismo sem aliança partidária ou sindical, com a certeza de que será possível pagar uma prestação no fim do mês e que nos sobre, ainda que um pouquinho, a sensação de estar fazendo algo de bom para a sociedade... alguém sugere?
quarta-feira, 31 de março de 2010
Jornalismo Literário ou New Journalism.
Ao mestre Capote, com sangue frio.
Após o julgamento do casal Nardoni, responsável pela morte da menina Isabella, ambos foram considerados culpados e encaminhados para a penitenciária onde cumpriram, resignados, a sua pena. Alexandre trabalhava no almoxarifado, sempre quieto, e Ana Paula Jatobá lia a Bíblia diariamente. Não se sabia se tratava de uma tentativa de se redimir perante Deus ou a sociedade por tirar a vida de uma criança indefesa, visto que o casal jurava inocência, ou se agir daquela maneira fazia parte da construção de um perfil exemplar que contribuísse no pedido de recurso. A história dos Nardoni foi esquecida, aos poucos, sendo lembrada somente no dia
Após onze anos de prisão, o casal Nardoni já poderia cumprir a pena em regime semi-aberto, quando ocorreu na penitenciária do Tremembé uma rebelião. Os presos se organizaram, fizeram motins, queimaram colchões, cortaram a garganta de guardas e chegaram a uma resolução curiosa: iriam assassinar Alexandre Nardoni.
Às 18:00 daquele dia, dois presos, Josimar Melo da Silva, mais conhecido como ‘o Carrasco’ e o outro um travesti que se identificava por Aninha Jatobá (sugestivo, não?) arrastaram Alexandre pelos corredores do presídio e, com as mãos ao redor de seu pescoço, tentaram sufocá-lo. Quando os olhos de Alexandre ficaram injetados de sangue e seu rosto começava a se desfigurar daquele modo que somente as pessoas que morrem sem ar ficam, Aninha Jatobá soltou seu pescoço. O Carrasco carregou Alexandre alguns lances de escada no colo, levando-o para o topo do pavilhão 1 do presídio. Chegando em uma sala cuja grade havia sido arrebentada, Alexandre foi arremessado para o chão diversas vezes. Uma, duas, três. A cada vez que batia no chão, seu corpo tremia e mal ele podia reaver a consciência, já era novamente arremessado. Após os ferimentos começarem a surgir em seu corpo, o Carrasco empurrou seu corpo inerte pelas frestas da grade arrebentada, segurando-lhe pelas duas mãos: o corpo de Alexandre ficou exposto, de modo que Aninha Jatobá pudesse vê-lo do pátio da penitenciária. Ela calculou o ângulo e fez um sinal afirmativo. O carrasco então soltou o primeiro braço. Alexandre ficava preso por uma mão só, o corpo distendido, o peso de toda a sua culpa sendo segurado apenas por uma mão. Primeiro a mão direita liberada, depois a mão esquerda, e Alexandre caiu no vazio não sem antes balbuciar a palavra ‘perdão’.
Obs: quando a rebelião foi contida e o Carrasco e o travesti Aninha Jatobá foram questionados se eram ou não autores do crime, eles negaram veementemente, dizendo que havia alguém no edifício que fora responsável por jogar Alexandre daquela altura. Sem conseguir conter o riso, entretanto, um repórter questionou se fora um possível ladrão. Aninha Jatobá não perdeu a classe, nunca perdia, e replicou que ladrões numa penitenciária são o que não falta.