sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Saudades do menino deus

Queria eu era buscar qualquer alívio para todos os que fossem meus questionamentos. Sete e meia da noite, em algum ponto da serra gaúcha, penso no tamanho desse Estado e no quanto estou longe de casa. Penso no menino deus e no desenrolar dessa história - outra transa, outro caso, não sabia de nada naquelas épocas e hoje eu penso não saber de mais nada ainda. Com a mera ambição, entretanto, de saber de quase tudo. E saber tão pouco da minha vida, do que nos cerca, essas incertezas, angústia de comer devagar e não consigar vomitar, dessa que causa travo em garganta, que tem gosto de chimarrão amargo e quente aqui nesse vale do sul do país, com essa eu não sei lidar. Sinto falta dessa paz que nos acompanha quando estamos em um lugar de onde fazemos parte - não se trata, nesse caso, de gostar ou estar feliz. É como se houvesse, em algum momento da vida, essa possibilidade de se integrar com o todo com uma intensidade profunda, quase dolorida, uma presença constante, concisa e veemente.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Curitiba de esquina

Fui dar em Curitiba, que se encontra no meio do caminho entre são Paulo e meu destino final no sul do país, e encontrei aqui uma cidade de centro interessante, um centro que mistura uma arquitetura clássica com prédios modernistas, ópera de arame, jardim japonês, casas de inverno, e passeando pelos arredores do hotel eu pensava em Dalton Trevisan e nos contos de O vampiro de Curitiba e tentava imaginar Curitiba no inverno e seus personagens caminhando solitários pelas ruas. Tão logo o sol surgiu no meio do dia chuvoso, lembrei que Curitiba era também berço de Leminski, saudado Leminski, cujos poemas me lembram os pensamentos que eu tenho na hora e sempre esqueço depois. Continuei na Avenida Barão de Rio Branco e, na esquina, com a Rua São Francisco, encontrei um sebo grande, amplo, convidativo: os livros arrumados nas prateleiras, nas estantes, um cheiro de incenso, pouco pó, diferente dos sebos da Liberdade ou da República, em São Paulo, aqueles onde eu mal entro e inicio minha interminável sessão de espirros. O que manda, guri, me pergunta o cara. O cara tem um sorriso na voz, sequer me olha, mas foi simpático: eu respondi, nada. Como sempre: do mesmo modo que outros respondem "só estou olhando" para vendedores de lojas de roupa no natal, eu respondo quando entro em sebos. Porque de fato, nada estou procurando: estou à espera de um achado, tão somente. E achei - um livro do Leminski. Antologia poética; poemas e análises críticas, por dez reais. Saio do sebo feliz, viro uma esquina, tomo um sorvete, observo: de longe, os curitibanos esperam seus ônibus nesses tubos transparentes, protegidos da chuva e do trânsito. Uma maneira confortável, eu penso, e acolhedora de se pegar um ônibus. Encaro os prédios do centro da cidade, de esquina: olho janelas. Penso: será que Leminski morava em um deles?

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Filme inaugural do cansaço

Porque é a atividade mais passiva do mundo, que era sentar-se em frente a televisão e deixar que o filme corresse. Exaltado, suspirava, prendia a respiração, depois aliviada, o peito enrijecido, os músculos esclerosados, depois relaxados: era o máximo da ação performática nesse momento, o de ver o filme, e não há nenhum problema, penso, e talvez me desminta tão cedo escrevo isso, em querer poucos, breves, mas ainda sim alguns momentos de pura paralisia e expectativa: no sentido de: ser expectador, tornar-se expectador, meio cansado de ser agente de vez em quando.

Só me proponho a agir no grito, gritar, gritando como única ação: de modo que, minha garganta haja, eu não, haja no sentido de agir e de existir, só ela exista e se torne a ativa de uma ação: não meu corpo, meu corpo queria inerte por uns momentos. No meio da rua, no meio do trânsito, mesmo com o farol aberto, pensei inclusive em deitar no asfalto no meio do meio dia em que cruzava a cidade. Choveu, chove, meu corpo inerte seria arrastado pela correnteza, eu passivo de ação, descendo a Consolação arrastado pela correnteza, mas gritando, descendo, escorregando, gritando.

Por isso que eu gosto de ouvir música, acabo de raciocinar.

domingo, 12 de dezembro de 2010

No calor e na dança: nós deliramos.

Domingo a noite, um domingo quente, ouvindo Chan Chan e morrendo de vontade de aprender espanhol, essa vontade que antes me tomava apenas para me permitir ler os romances de Julio Cortàzar no original e que agora se extende a me permitir a possibilidade de cantar as músicas do Buena Vista Social Clube em seu original também. Uma vontade excelente de viajar, reler As veias abertas da América Latina, como se São Paulo e minha casa fossem pequenas demais para abrigarem, por hora e pelas próximas semanas, meu coração que se dilata. Penso que a vida não se complica se não nos enraizamos em território que foi imposto – penso que talvez a vida como foi descrita e por nós aprendida talvez não seja a certa ou talvez não seja a boa, e quero sair por aí, e viajar. Eu nunca seria de lugar nenhum. E não seriam meus os problemas de lugar nenhum. Eternamente de passagem, um eterno: passageiro. Quase como um vampiro assumido, sem vínculos, gostaria de me aproveitar puramente das belezas de Havana, de Buenos Aires, e depois de outras cidades pelo mundo tais como Nova York, Paris, Madras, Calcutá, Tel Aviv, sem pregos, sem pinos, vivendo uma vida em cada esquina de cada cidade, sem crimes que não os de consciência pesarosa: abandonada família, abandonados amigos, abandonada a universidade, mas talvez essas ideias que surgem em minha cabeça sejam fruto do calor, do calor e da rumba: no calor e na dança, nós deliramos.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Da autonomia não-alcançada (impressão)

You're a bedtime story. The one that keep the curtains closed. Ouvindo Morphine e cortando as unhas da mão esquerda com perfeição, desenho a curva branca da ponta dos dedos com a lâmina do cortador de unhas (com perfeição), percebo que não sei ainda, ainda não consegui, não alcancei a coordenação necessária para cortar as unhas da mão direita com eficiência porque isso necessitaria de uma coordenação exímia na mão esquerda, com a lâmina redonda desenhando as linhas brancas das pontas de meus dedos da mão direita, e aos poucos eu vou cortando as unhas da mão direita que vão se tornando marcas picotadas, rasgos de unha nas pontas dos dedos, e me causando aflição pela imperfeição que agora carrego nas pontas dos dedos e paro a atividade somente por dois motivos: ou para recomeçar a música e ouvir novamente that I can't make it on my own ou para aceitar que não posso, de fato, ainda, cortar minhas próprias unhas sozinho.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Do amor, essa falácia. O amor pelos outros e por nós mesmos.

Ando num meio fio entre a autonomia e o egoísmo. O que aparentemente pode ser bom, pode também ser muito danoso quando falamos em relações. Me pergunto porque eu, que escrevi, no começo desse blog, um texto classificando o amor como um sentimento burguês agora estou andando de mãos dadas, me alimentando de amor o dia inteiro, perdendo ônibus que passam de meia em meia hora (coisa que eu não faria anteriormente). Restringindo meu tempo a esse meu novo objeto de desejo - dirigindo a ele palavras afáveis. Eu andava num mar de desilusão, um marasmo, com um coração meio empedrado, esquecido de como era se sentir dessa forma - e de repente, num turbilhão de acontecimentos, eis que me encontro aqui, parado, centralizando minha vida a esse encontro de dois e tentando não referendar como válidos os esquemas e as discussões que estou tendo com tanta gente que me ama por fora, e que eu amo também.
Me considero um ser presente nas vidas das pessoas que por minha vida passam - não gosto de ser um ponto inútil, alguém com quem não se pode contar. Talvez seja essa minha missão nessa esfera humana em que vivemos - fazer valer a pena. Não hesito em ajudar, eu acho. Não hesito em doar meu tempo, meu esforço, minha paciência. Era um amigo abnegado. E nesses últimos tempos eu vinha sentindo isso, essa quase vulgarização da minha tolerância, da minha amizade. Vinha me sentindo como um prestador de serviços, que presta serviços mas não sente.
O amor me fez perceber isso, que eu sinto, e que se sinto o bem sinto também o mal. Sinto e já não quero mais hesitar ou esconder o que eu sinto, por causa dos outros, em nome dos outros. Olha a revolta, pera lá - mas não quero esperar, tampouco cair nessa armadilha de bom mocismo e convicção. Não vou e pronto, simples. Por quê? Porque eu não quero. Mas é egoísta da sua parte! É, é egoísta, assim como todos vocês tem sido comigo quando eu preciso. Ainda é cedo, não está na hora, vou ficar mais, tchau.
Tchau.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O meu interno ou da essência de cada um.

O biscoito de polvilho na boca seca a saliva toda. A boca seca torna-se colada, língua e céu da boca, me impedem de falar. Eu seco, sem essência, penso em Maria Pompidou, aquela francesa de 28 anos cuja corpo era de uma arquitetura digna de Le Corbusier. Maria Pompidou que me questionava, mãos na borda da banheira e olhar acima do nível da água. O biscoito de polvilho é uma barreira para que língua e céu da boca se encontrem – aperto um contra o outro, poeira em minha boca, tudo seca, tudo perde o excesso e se torna o essencial, menos cheio, menos gordo, mais sintético Vou caminhando pelos corredores de minha casa, camiseta branca e calça moletom, sem meias, e me sinto assim meio isso, meio: essencial. Maria Pompidou tinha um corpo que era uma escultura, era atriz e dançava no palco com bailarinos musculosos cujos corpos eram projetos sinuosos de Niemeyer. Nos olhávamos entre palavras perdidas, copos vazios, mastigando biscoitos de polvilho, eu naquela época tão adiposo, tão excessivo, ia sobrando por entre as esquinas de Maria, ia sobrando pelo sofá, eu era todo um excesso de algo pegajoso, era a mais, e todas as tentativas de ser plural, multifacetado, numeroso, ainda sim não eram (não foram) suficientes para preencher as lacunas de Maria Pompidou.
Quando descobri que eu podia colecionar as palavras que eu ia dizendo, tornei-me um mestre sobre Maria e ela fugiu. Vou chegar em casa hoje, as quatro da tarde, abrir as janelas do meu quarto e deixar o banho laranja de fim de tarde invadir tudo. Vou então brincar com as palavras, doces tentáculos esses que chicoteam as mãos alheias e no entanto afagam e fazem carinhos em minhas mãos. Vou escrever somente para te causar inveja do modo como faço também carinho nelas, Maria Pompidou. Esses dias, quando perdi qualquer excesso que haja em mim, eu descobri que em essência eu sou isso: palavras.

domingo, 26 de setembro de 2010

Entre santos

Uma propaganda anuncia e me induz a comprar a margarina Becel – ela diz que faz bem ao coração. O meu anda abalado – não ferido ou magoado, mas talvez constrangido pelo que ele deseja. Encabulado. Sobretudo alimentado por um sangue venoso de dúvidas – as veias que ali chegam trazem consigo incertezas e as artérias não saem vazias. Entopem-se dessas incertezas. Vai ficando contaminado. Tosse seca, alergia e um constante cheiro de tinta branca e fresca sai do meu nariz ao passo que também o respiro. Enfim, uma confusão. Essa noite meu coração está aos pulos com desejos obscuros e recém chegado de um passeio noturno pela cidade quente. Ontem dormir de janelas abertas, mas hoje me abraço no agasalho – não sei se é frio ou se meu sangue bombeado por esse frenético me descompassa o corpo e a pele do que devo sentir pelos ares da realidade. Meu coração te imagina, te imagino sem a mente e apenas sinto sem saber se é certo, errado, moralmente aceitou o adequado a nosso atual estado de distância; enorme. Aproximadamente 250 km, de são a são. Entre santos, ficamos (fico) numa espera meio doida, na impossibilidade de consumar desejos, comendo pão com margarina Becel para acalmar o meu coração. Você não sabe de nada, nunca. Você dirige na contramão. Você dá risadas irônicas quando não pode zombar de mim, porque falo sério e quando eu falo sério eu não gosto que brinquem (ninguém gosta). Rasgo essa tua ausência com palavras e dúvidas. Atordoado fica meu coração – não rabiscado ou ferido de amor. Mas dúvidas. E quando eu penso e quanto mais eu penso eu vejo que deixar essa sensação é uma regra normativa, é imposição sobre escolha, eu enxergo que todo coração é formado por pontos de interrogação: um sim, um não.
(Assumidamente, fiquei puto. Você não merecia que eu escrevesse sobre você. Você não merecia sequer que eu pensasse em você, em te encontrar no Parque Buenos Aires, você merecia que eu te calasse em minha memória e te tornasse um objeto obtuso em meu coração).

São Paulo, 26 de Setembro, depois da fossa-a-bossa-a-nossa-grande-dor.

sábado, 18 de setembro de 2010

Amors

O amor invadiu meu corpo, em busca de espaços. Ele todo era uma falta, um por vir imenso, e me invadia e deixava cheio de buracos para formar espaços. Ele invadiu também minha casa e mudava os móveis de lugar para se encaixar, para que coubesse, ele tirava as visitas do sofá e das poltronas para que sobrasse espaço. O amor quando veio me deixou vazio, aumentando o raio de cada poro, ele foi vazando por espaços, ele nunca preenchia nada. Fui me tornando oco, um ser sem nada, porque respeitava sua vontade – esse amor que se anunciava, ele me dizia que quando chegasse de vez seria com uma violência tamanha que se não tivesse um espaço só seu bem definido, iria arrebentar com meus órgãos internos, com meu pulmão, com meu estômago, e eu com medo fui deixando ele se fazer e ele se fazia assim, devagarinho, tomava cada trecho de mim numa cadência cada vez mais ousada. Assim, eu hoje olho minhas fotos e vejo quadrados brancos, vejo minha face apagada, me vejo sem mãos, sem olhos, me vejo vazio nas fotografias da parede e quando me perguntam o que é aquele vazio, eu não hesito em dizer: é o amor. Que me toma por seu abrigo, que me acreditou ser uma caixa de proteção, uma segurança, que me apaga prometendo sensações – essa borracha invertida, esse pedaço de vida que virou esse eterno pedido. Já não consigo me dissociar mais de meus vazios: hoje sou um homem semi completo por ter cedido espaço, me apertado numa luta de mim contra mim dentro de mim para que esse amor em mim coubesse: eu espero. Hesito, mas espero. Com ele viriam músicas, viriam sons, gemidos, viriam com ele algumas dores e até um pouco de morte: ainda sim, espero: vazio. Semicheio. O amor corrói como uma palavra atravessada e já não tenho mais garganta para agüentar travos de palavras ou encontrar novas interpretações: sou isso, pela metade, e vou sendo esperando essa peça do avesso e do contrário para tirar de mim esse amor todo e transformá-lo em: pessoa.

sábado, 11 de setembro de 2010

Estomazil.

Me diga já o que foi que aconteceu, eu cantarolava enquanto ajeitava o edredom e a manta - desconfortável estava meu estômago, auqela conhecida queimação que sobe pelo esôfago e desemboca em um calor incômodo no começo da língua. A essa altura eu já estava arrotando azeite e sofria como consequência. Loucuras gastronômicas pela madrugada afora, iluminadas pelo 3:30 do visor do microondas, ai que eu continuo com essa vergonha de comer na frente alheia e seguro minha fome até que ela me vire um bicho em plena madrugada. Debruçado na pia, meio suado, lavando o rosto em água gelada. Cabeça embaixo da torneira. Viro a boca para cima, sorvendo a água gelada ou o suor mesmo, já não sei. Maçã com molho inglês, café com pimentão, penso três vezes: não sou normal, não sou normal, não sou normal, e depois me olho no espelho e repito outras três vezes em voz alta. Tudo ácido, tudo verde limão como num tornado violento que corrói o que há de mais delicado dentro de mim. Havia tirado a mistura do fogo, bebido rapidamente, ai eu quero me matar eu penso, de remorso, vou tomar manga com leite, posso, quem sabe, dormir pelo menos. Ainda nessa madrugada, mais três vezes ao banheiro, três vezes a cabeça embaixo da torneira e a boca virada, foco de incêndio frente à mangueira de bombeiros: hidrante escusado de sua tarefa original. Arrastando correntes pelo corredor, subindo um lance de escada, alisando paredes, sorte não morar em apartamento, assim tenho bastante espaço para percorrer e na terceira vez que ergo a cabeça, depois do jato d'água fria, eu me olho no espelho e não me reconheço mais. Pequeno monstro.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Val paraíso

Quando o abro, todos os dias, e vejo aquela pergunta fatídica, anseio responder: não sou, estou. No Chile, em 2026, relendo pela quinquagésima vez O livro dos abraços e sem ter hora nem vontade de voltar para casa.

Se Deus quiser, um dia quero ser índio. Viver pelado, pintado de verde.
Num eterno domingo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Divina Comédia

Para a Bê.
Beatriz esperou por dias e dias, até mesmo quando já estava em uma estação de trem, e Dante que não vinha. Sentada, inicialmente, com as malas aos seus pés, e depois sentada sobre as malas, via o calor que se estendia sobre à tarde e apagava o suor da testa com o dorso da mão – prendeu os cabelos num rabo de cavalo, se abanava. Aquela estrada de terra que se estendia à sua frente, aquele interior de interior que ela olhava, apenas uns canaviais à sua frente, mato mato mato, igrejinhas ao fundo, construções de outro século, Beatriz esperara por Dante mais de uma vida. E Dante não chegava. Perdera-se em algum ponto do caminho (uma pedra?) entre o último círculo do inferno e o sétimo céu. Por um momento, Beatriz pensara que sem Dante não seria feliz porque sem Dante sua história não se completaria. E aí eis que ela arrumou suas malas e, cansada de se esperar, foi para a estação de trem: vazia.
Uma vida inteira cercada de anjos. Que a atendiam e lhe davam sorrisos fáceis, gracejos, roupas brancas – o céu era um grande jardim com crianças brincando, encravado no meio do sertão, poucos luxos na verdade, água, pão, frutas doces e mesmo Beatriz morava em uma casa de pau a pique. Quando sentia tristeza ou solidão se lembrava que era sobretudo um ser humano porque os seres dali não sentiam essas coisas – esses sentimentos ainda verdes, nada maduros, como a melancolia.
Um dia Beatriz despertou de um estado anterior de inconsciência – um sinal. Nascera para esperar por Dante. E descobriu que não era isso que queria mais. As roupas brancas, os varais vazios, esvaziou também algumas penteadeiras, uns álbuns de fotografia com fotos em preto e branco (seu pai, sua mãe, seus antepassados) e trancou cada uma daquelas coisas em três maletas de couro. Atravessou a sala, a varanda, e desceu por algumas ruas até que chegasse ao centro daquele lugar, onde as ruas já eram de pedras, e ponderou por alguns instantes sobre o que fazia, parada em frente à igreja da matriz. Se esquecera, então Beatriz se lembrara, do seu caderno. Voltou para a casa onde passara os últimos anos, sozinha, à espera de Dante, e encontrou, enrolado em uns panos velhos, na segunda gaveta da cômoda, o caderno onde transcrevera todas as sensações que fora aprendendo com o tempo. De começo, pensava, era um ser nulo, uma criação de argila posta naquele céu por alguma força superior afim de esperar. E era oca de sentidos, não sentia, mas não como os anjos que a cercavam. Beatriz não sentia porque não aprendera a sentir. E foi, aos poucos, seu jeito humano nascendo, o aprendizado de uma sensação: a dor, o amargo, um riso, uma geléia de amora tocando a ponta da língua. Os cheiros que a cercavam naquela cidade: o canavial que se estendia por todo o redor do céu, em circulo, a dama da noite, os lampiões e as fogueiras e o cheiro de queimado e fuligem que invadia seu nariz toda noite. No caderno, Beatriz escrevia tudo. E conhecia também, porque o conhecimento não era dado de graça, tampouco era uma concepção essencialmente humana – a literatura se fez descobrir por ela. Um anjo, ou mil. As palavras, esses doces mistérios, ainda não os deciframos como queremos. Que valor tem a literatura? É sempre um grito, o que varia é seu sentido: para fora ou para dentro, leve ou pesado, e ultimamente Beatriz gritava para dentro porque com o lado de fora estava leve, vazia, descarregada, totalmente cândida.
Aos poucos, Beatriz foi descobrindo, pelas ladeiras e se guiando pelos caminhos que aquelas casas contavam, à estação de trem, e agora ela podia sair dali sozinha. Não mais esperar por aquilo que seria: um resgate? Uma fuga? Uma evasão. Sobre sua cabeça um céu tão azul que doía nos olhos, e um verde que se estendia pelos canaviais à sua frente: decidia, cruzaria o sétimo círculo do céu.
E encontrara a estação de trem vazia, desativada quase, e se não fosse essa suave esperança que se desfazia na boca de Beatriz em sair daquele lugar, ela talvez voltasse a sua espera eterna. Sentada, descalçou os sapatos e esperava agora, um trem. A nuca quente, os ombros ardidos, sobretudo naquela estação havia uma sombra e isso já lhe confortava: um sinal. Aquela tarde era igual à todas as outras que Beatriz passara no céu: quente, com uma brisa acolhedora – as casas, ao longe, telhados e parapeitos, contornos coloridos, centenas de anjos correndo e brincando.
Ir embora é sempre uma escolha, pensou Beatriz, o queixo apoiado, olhos cerrados. Mas ir embora depende do referencial: porque ir embora para quem chega é simplesmente chegar: sair do sétimo céu e atravessar todos os infernos adiante seria uma fuga se visto do céu – mas seria uma chegada se visto da terra. E era escusado, aquela altura, saber se céu ou terra eram meros referenciais. Primeiro porque, sendo ali sua morada, um céu de toda vida, com canaviais, anjos, igrejinhas, casas de pau a pique, roupas brancas no varal, aquilo era sobretudo um passado. E segundo porque à sua frente, trilhos de ferro e trem, insegurança, lhe esperava um destino, com ou sem um Dante, sozinha, na imensidão desassossegada que lhe diziam ser o inferno. E este era agora seu futuro.
As palavrinhas que corriam soltas caderno afora, linhas preenchidas, e Beatriz já não sabia o que fazer com elas. Toda palavra tem uma história por trás de si – toda mão que a escreve é uma trajetória. itinerante, uma nostálgica maquina que insiste em registrar o inregistrável
Beatriz se cansava daquele sol e daquele céu azul que agora era pesado já sobre sua cabeça – por uma ou duas vezes piscou e os olhos carregados se fecharam mais do que se abriram: uma mala caiu. Mas ao fundo, e com o som do silvo agudo ela despertou rapidamente, vinha no final daqueles trilhos que se estendiam por todo o cruzamento dos sete infernos, um trem. Que acabava de parar em sua frente, naquela estação, e então quando Beatriz embarca ela deixa no banco da estação o caderno porque não faria mais sentido, nem seria mais possível, registrar um futuro desconhecido.

sábado, 31 de julho de 2010

Azulejo

Estava coando o chá e lembrei de você. Fui coando e lembrando e, sem querer, transbordou o chá na xícara e foi se espalhando chá pela pia inteira, um infortúnio. Tive que correr para alcançar o pano mais próximo e contar esse vazamento de você e desse chá sobre a pia. Tenho andado muito por aí. Numa dessas andanças descobri uma feira no final do bairro que vende chás de toda espécie. Artemísia, camomila, citronela. Erva cidreira. Agora ando tomando. Nesses dias de calor em pleno inverno é quase um contra senso tomar chá e tomar sopa, mas tenho evitado a cafeína para ter umas noites de sono mais tranqüilas – e como você bem sabe, você que já dormiu comigo muitas noites, eu não consigo ir pra cama sem ter uma xícara na mão. Por isso inventei esse novo hábito. Artemísia, melissa, anis estrelado. Ontem fui buscar manjericão na feira e encontrei Caio e Suri e me pergutaram de você, como você estava, quando voltava. Disse que estava gostando do curso, que estava feliz, que estava bonita nas últimas fotos que eu vi e que voltaria no final do ano. Eles se despediram animadamente, Caio e Suri, e partiram para o final da feira onde vendia pastel. Eu prossegui meu caminho e levei um maço de manjericão bem verde pra casa. Depois, tive que atravessar a rua inteira para voltar para nossa rua e dei de cara com eles de novo. Passamos em frente à barraca dos chás. Guaco, capim santo, erva doce. Canela. Resolvi convidar os dois para um chá aqui em casa, essa casa anda tão vazia sem você, e mesmo quando eu faço um bule de chá sempre sobra e fica gelado, depois, e fica tão ruim de beber que eu acabo jogando fora. Eles aceitaram e ficaram de passar aqui em casa no final da tarde. Fomos conversando. Suri é a mais nova professora do departamento. Conseguiu passar no concurso. Senti que Caio estava desanimado. Não compõe nada há semanas. Coitado. Pensei em você novamente, e disse que talvez ainda tivesse aquele disco do Stan Getz que você disse que te ajudava em seu processo criativo. Fui buscá-lo e não achei. Ele está aí contigo, o disco do Stan Getz? Não lembro de você tê-lo levado. Enfim. Fomos conversando e eu fui coando o chá, e de repente continuei falando de você e do seu disco e da voz suave da Astrud Gilberto e quando dei por mim o chá foi transbordando da xícara, um copo de chá doce para tudo quanto é lado. Sorte que temos um rodinho de pia aqui em casa, pensei. Suri admitiu que sempre achou esse utensílio doméstico um desperdício, disse que nunca usava ele. Preferia deixar a pia secando ao natural, ou empurrar a água com as mãos mesmo. Sei lá, eu sempre gostei de ter um rodinho de pia. E foi útil para recolher o chá derramado. Eles acabaram indo embora sem chá nem disco do Stan Getz. Quando você volta? Comprei uns novos sabores, acho que você vai gostar. Hibisco, camélia, jasmin. Flor de laranjeira. Hortelã, para o hálito e para a alma. Saudades, imensas, viu?

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Os ossos do ofício

“Não há nada mais conservador do que um liberal no poder “

No futuro (muito distante) depois de um consenso descuidado ou de um descuido consensual se formará, após a aprovação do Congresso Nacional, o Sindicato das Profissionais do Sexo. O Sindicato terá como objetivo regulamentar e aperfeiçoar a profissão, visando reparar um erro histórico cometido pela humanidade com essa categoria do trabalho feminino; o escanteio à que a prostituição fora submetida durante toda a história sindical do século XX. À princípio, esta que fora e ainda será conhecida como a profissão mais velha dos mundos, trará consigo alguns empecilhos para sua regulamentação. Entretanto, após um breve período de confusão por parte das profissionais, haverá um cadastramento feito no Sindicato e elas receberão carteiras profissionais assinadas com direito à vale transporte, alimentação e férias. Haverá um problema: entre elas, que são amigas íntimas umas das outras ao passo que também são suas piores inimigas, nascerão intrigas e discussões à respeito de quais direitos cada uma poderia ter. Alguns clientes passarão a procurar apenas as sem carteira afim de não ter que pagar pelos benefícios. Para isso, o Sindicato estabelecerá a necessidade de uma habilitação para o exercício da profissão que segmentara as prostitutas em categorias de acordo com seu serviço (A para oral, B para anal, C para aquelas que atendem os casais, etc...). Surgirão cursinhos. Aulas de três dias bem como exame médico e psicológico que garante aos clientes poderem usufruir de profissionais bem preparadas com carteira assinada e classificação em sua habilitação (Perguntas como “Você é uma D?” durante a negociação se tornarão comuns).
Haverá um problema novo: a busca por um aperfeiçoamento nas categorias levará a um inchaço de profissionais de habilitação E cadastradas no sindicato (E = aquelas que dominam todas as práticas sexuais). A concorrência entre elas vai aumentar já que não haverá mais um motivo que destaque uma da outra.
Algumas universidades que já possuíam em seus departamentos de Antropologia núcleos de estudo acerca do sexo e da sua profissionalização irão, após um extenso projeto enviado ao MEC e uma discussão que permeará a imprensa por semanas e abalará os últimos pilares dos setores conservadores da sociedade, surgirá o primeiro curso de graduação em Ciências Eróticas e Sexuais, com habilitação em Meretrício e Cafetinagem. Com a proposta de um curso interdisciplinar, serão ministradas disciplinas nas faculdades de Saúde e História, e também de Artes Cênicas, buscando uma formação plural e abrangente. Aulas práticas (Kama Sutra I, Alongamento e tensão) e teóricas (História da prostituição no Brasil e Economia para não-economistas) serão combinadas igualmente, visando a construção de profissionais que sirvam ao mercado plenamente. Nascerão garotas de programa intelectuais. Lerão Flaubert, Balzac, Dumas e o Marquês de Sade. Conhecerão suas histórias bem como as de suas antepassadas. Novos núcleos de pesquisa se formarão nas universidades e quando o assunto já estiver saturado para a graduação, algumas moças reunidas irão propor a criação de curso de Mestrado e Doutorado, visando especializações de serviços a serem prestados.
O mercado se tornará promissor – donas de casa largarão seus maridos para investirem nessa nova graduação. O mercado se tornará também exigente: cada vez mais, as novas garotas de programa precisarão de mais e mais diplomações.
A essa altura, a primeira geração das prostitutas registradas já estará com a idade de se aposentar. E elas passarão a receber seus direitos: as férias perdidas e a aposentadoria. Indignados, os únicos setores conservadores da sociedade que ainda não estavam de acordo com esse processo, se espantarão em saber o valor que aquelas senhoras passarão a receber. Em pouco tempo, entretanto, mesmo esse setor conservador vai se render ao mercado do sexo e aceitá-lo como uma parte integrante da economia.
Os rapazes, entretanto, que também eram profissionais da área, em nada terão direito. Durante esses anos todos que se passarão, o Sindicato será administrado por mulheres que vão abominar a prostituição masculina, alegando que eles cooptam os seus clientes. Os senhores que foram, outrora, garotos de programa na juventude, vão cobrar seus direitos. Irão em busca de uma aposentadoria. De um plano de saúde. O Sindicato irá tentar escondê-los desse processo – primeiro negarão seus direitos para, à seguir, se mostrarem compreensíveis e iniciarem um processo sem fim.
A concorrência para entrar nos cursos de graduação ira aumentar e a escolha por Ciências Eróticas e Sexuais será um consenso entre as meninas que estiverem em dúvida entre Direito e Administração. As famílias se orgulharão mais da filha que entrar nesse curso do que da irmã que será aprovada em Medicina. Aos poucos o Sindicato vai ganhar um papel de destaque dentro das universidades e se formarão lideranças. À partir daí, as mulheres formarão uma cruzada contra a sua ausência política nos bastidores do poder – em pouco tempo, portanto, elegerão a primeira presidente ex-prostituta, Valentina Souza, ex-presidente e fundadora do Sindicato.
A prostituição regerá o país. Não haverá mais pudor em se tocar no assunto e isso vai inclusive causar uma mudança na língua e nas expressões: quando alguém for chamado de filho da puta vai se sentir honrado e a puta que pariu será um lugar sério, um museu quiçá. .
Aos poucos, novos ditames sociais serão criados: as prostitutas irão abominar os homens que não as querem. Todo homem, mesmo casado ou pai de família, terá que usar de seus serviços. E isso será socialmente aceito – o homem que não sair com, no mínimo, uma prostituta por semana, será vexado, duvidarão de sua sexualidade e potência. As suas senhoras, por sua vez, também terão tomado contato com a prostituição já durante uns anos; suas filhas estarão se graduando nessa profissão. Quem não for adepto da prática vai, inicialmente, ser alvo de comentários. E depois vai ser apontado na rua: retrogrado, conservador, moralista.
As igrejas não sairão ilesas desse processo. As imagens de Jesus Cristo serão derrubadas e a Nossa Senhora que repousava até então virgem e serena será substituída por uma imagem de Maria Madalena, não arrependida dessa vez, mas orgulhosa e nua. E as religiões mudarão, todas, e até mesmo a Bíblia será reescrita.
Valentina Souza se reelegerá uma, duas, três vezes. Mesmo sendo anticonstitucional. E, em seu terceiro mandato, quando o Congresso se tornar a casa de todas as mulheres oriundas do Sindicato das profissionais do sexo, conseguira aprovar uma ementa que torne a prostituição, dessa vez, uma lei. De uma condição abjeta, inicialmente, tendo passado por uma profissão legalizada, agora a prostituição será obrigatória para todo e qualquer cidadão.
E o mundo se tornará um grande bordel.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A sabedoria

Naquele dia em que descobririam que Regina iria freqüentar o curso de sociologia, os pais ficariam indignados. O pai iria abrir bem as narinas e iria expirar o ar que tinha dentro do corpo com raiva, e a mãe iria, numa cadência ensaiada em anos de desaprovação, erguer a cabeça e depois abaixá-la, balançando, e continuaria a olhar para baixo. Regina chegaria com sua pasta e sua bolsa, abriria a porta da sala com cuidado, e então entraria. Sentaria no sofá com medo da represália e diria a palavra sociologia num quase murmúrio, com a boca meio fechada, sem chiar a língua nem mostrar os dentes, essas performances necessárias para dizer a palavra sociologia de forma clara.
Depois o pai começaria o discurso. Diria que na faculdade de sociologia se reuniam subversivos. Regina argumentaria e, quando ensaiasse se levantar, o pai se viraria e apontaria o dedo em sua cara. Regina então iria se acomodar na poltrona e o pai andaria de um lado para o outro da sala. A mãe, muito emotiva, começaria a chorar e se perguntar o porquê de não ter uma filha como as outras. O passado iria começar a se desenrolar como um tapete áspero aos pés descalços – eram uma família muito limpa e andavam de pés descalços dentro de casa para não trazer as sujeiras da rua – e a mãe iria mais uma vez se lamentar do casamento perdido por Regina. O pai diria que aquele era um rapaz tão bom, tão honesto, com um emprego garantido. Que Regina deveria ter sido expulsa de casa quando negou o casamento. Que Regina não sabia nada da vida porquê era jovem demais. Que Regina lia demais e se deixava influenciar por idéias de mulheres perdidas e de pessoas que nada tem de compromisso com a vida real. Que Regina não iria freqüentar o curso de sociologia porque deveria continuar como era: professora, de crianças. Que se não fosse daquela forma era melhor que Regina fosse morar com a avó, em Barbacena. E Regina mais uma vez, com a alma indignada, iria ficar vermelha, e iria se arrastar até seu quarto, e se debruçar em sua cama, e montar um plano em sua cabeça para sair daquela casa. Os pais, na sala, iriam ligar a televisão e se lamentar pela filha. A mãe iria fungar em um lenço bordado. O pai iria enlaçar a mãe, por a sua mão no ombro da mãe e apertar, porque era assim que demonstrava preocupação e carinho. A mãe, cujo tempo de vivência com o pai já lhe trouxera um certo aprendizado, iria ficar agradecida pelo carinho e desejaria que Regina encontrasse um homem como o pai.
Mas Regina havia se cansado daquela cena que se repetia à cada decisão sua. Desde que recusara o pedido de casamento, começaram a lhe tratar como um perigo eminente aos bons costumes daquela casa. Começaram a lhe olhar torto pelo bairro, pelas ruas. Desde que viram Regina com outros homens que não seu quase noivo, começaram a desconfiar de Regina pelas ruas do bairro. Os vizinhos comentavam com a mãe, que chorava, porque era muito emotiva. E era escusado deixar aquela casa porque dependia daquelas pessoas e porque gostava delas. Queria, no mais íntimo de sua existência, que as pessoas lhe entendessem.
E na última reunião do comitê onde estavam discutindo as novas diretrizes, os novos passos que seriam dados pelos juventude engajada, Regina havia acabado de negar o pedido de casamento, e se encontrava desolada. No meio dos panfletos e da desolação, encontrou Cláudia, que era uma moça loira e bonita, também do comitê, e da faculdade de sociologia. E Regina e Cláudia se deram bem desde o primeiro instante e quando Regina lhe disse que só tinha um magistério mas morria de vontade de entrar para a faculdade de sociologia, Claúdia lhe deu o maior apoio que alguém poderia lhe dar. Excitada, Regina seguiu os passos de Cláudia e entrou na faculdade sem que ninguém soubesse.
Mas ficava claro que sabedoria não estava em se expor. A sabedoria era algo como uma traça, que ia comendo os arredores de um papel imundo, de um relatório de denúncia. O ataque frontal, o verbo atravessado, nada disso era eficaz. A frase que agredia, por mais correta que estivesse, era como lançar o corpo frente à uma bala disparada, só esperando pelo alvejamento e por um sangrar incontínuo. Fosse uma vitória, um motivo de orgulho, Regina descobria que era ineficaz. Não queria ser um corpo alvejado e corajoso. Queria ser um porta-voz ativo de cadência conhecida.
E Regina soube desde então que a sabedoria consistia em ficar quieta. E passou a evitar expor sua opinião como quem tem um doce escondido no bolso – decidiu que era melhor saborear sua opinião quando sozinha, em um quarto fechado, tirando-a do bolso e desembrulhando lentamente o celofane que a envolvia do que ofertá-la à quem não apreciava seu sabor. Mesmo para dividi-la: iria somente dividir com quem tivesse tanto gosto por aquilo quanto ela. Já não dava mais risadas, mas sorria complacente. Lembrava das palavras de Cláudia que costumavam dizer “faça voz de burra” ou “voz de burra é uma coisa que funciona!”. E com os olhos arregalados, as sobrancelhas erguidas, mordia o lábio inferior numa discrição que parecia sem querer mas que fora detalhadamente planejada e o pai consentia. A mãe lhe servia o café na xícara e prevenia para que tomasse logo. O café vai esfriar, Regina! Dizia e ela assentia com a cabeça. E sobretudo, resolveu, deveria pedir desculpas. Diria à mesa que ela era uma filha ingrata. Diria que não dava valor aos esforços da família. Diria que os deveres dos filhos são honrar os pais. E os pais aprovariam e Regina novamente sorriria, complacente. Porque depois de conhecer Cláudia, Regina se tornaria uma mulher sábia. E a sabedoria, Regina iria descobrir, consiste em ficar quieto.
Eram uma família feliz, finalmente. Depois de tantos tumultos, de uma filha que bambeava no meio fio entre uma vida correta e a subversão, podiam se sentar na mesa da sala de jantar e almoçarem em paz, aos domingos. Agora Regina trazia a amiga do grupo de jovens para a casa, uma moça boa chamada Cláudia, que também era professora de crianças e ensinava catequese na sexta-feira de manhã. Se trancavam no quarto após o almoço com metros e mais metros de tecido branco – saíam no final da tarde. Um dia a mãe perguntou para que era aquilo e Regina lhe disse a verdade: estavam bordando um enxoval. Regina decidira se casar, finalmente. A mãe encheu-se de felicidade, não podia acreditar, os olhos marejados, a panela no fogo, foi deixando tudo de lado e abraçou a filha e também a amiga da filha, que finalmente botara algum juízo naquela cabeça.
Traziam uns livros. Livros grandes, meio pesados, autores estrangeiros, alemães, a mãe não conhecia direito mas ficou feliz em saber que Marx era um profundo analista da importância da família. Regina então lhe contou que de acordo com ele o casamento era um bem sagrado e precioso. O pai apenas assentia, com orgulho da nova fase, e pensava consigo que era grande responsável por essa evolução porque sempre deu o exemplo.
O tempo passava e o comitê resolveu cair na ilegalidade. As faixas que Cláudia e Regina passaram tardes inteiras pintando com mensagens que iam contra a opressão já não podiam mais ser utilizadas em passeatas. Foram queimando documentos, identidades, e não sabiam o que fazer com Ricardo, um dos líderes da diretoria, membro importante e já procurado pela polícia política. Foi Cláudia quem sugeriu mas Regina quem realmente elaborou o plano e encarou a situação como se deveria ser encarada: com sabedoria.
E o pai não pode conter dessa vez seu orgulho ao receber em sua casa o noivo da filha, que falava alguns idiomas e trazia em sua mala diversos livros. De longe se percebia que era um homem culto, um homem letrado. E Ricardo inspirava tanta confiança naquela família que os pais, por mais que achassem equivocado que o noivo fosse se hospedar por ali, até aceitaram que Ricardo ficasse na casa deles por aquele tempo em nome do conforto do rapaz: Regina lhes confidenciou que Ricardo estudava no Rio de Janeiro e estava de férias da faculdade, mas que não se dava muito bem com a família. Tinham muito dinheiro, mas Ricardo insistia em fazer a própria vida. O pai achou digno e honesto. A mãe ainda teve medo de que comentassem, mas se acalmou assim que Cláudia afirmou o contrário. No fundo a mãe concordava com ela, com a alma sorrindo, que quem comentasse tinha era inveja do noivo rico de sua filha.
E se Regina não tivesse virado uma mulher sábia, a polícia aquele dia iria invadir sua casa em busca de provas de envolvimento seu com o comitê. E a mãe iria olhar ressabiada, e o pai diria que sempre soube que Regina lhes traria um grande problema. E os dois iriam olhar decepcionados a uma invasão no quarto de Regina e a exibição de panfletos de mimeográfo espalhados em sua cama. Se Regina não tivesse entendido o que era sabedoria, a mãe não teria dito ao policial que a filha estava para se casar e que arrumava, no quarto, o enxoval, com a ajuda da amiga. A mãe também não comentaria, para completar o quadro, que a filha estava lendo todo tipo de livro sobre casamento e que contava com a ajuda de uma amiga para arrumar os preparativos. E a mãe não teria oferecido um cafezinho aos homens brutamontes que haviam entrado em sua casa. E a mãe também não concluiria, por dedução, que aqueles eram seguranças que a família rica de seu futuro genro havia enviado para verificar onde ele estava morando. E não teria também tanta cautela na hora de escolher os melhores biscoitinhos de maisena do pote para servir junto com o cafezinho. E os homens não teriam ido embora, acreditando que aquela era uma casa de respeito e que pela primeira vez haviam se equivocado. E foi graças a essa sabedoria que Regina não foi presa, torturada e morta.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Hai-Kai

Solidão: é quando
o sexo vira
masturbação.

domingo, 20 de junho de 2010

Clara

Cheguei por aqui testando passos falsos, dizia, uns olhares que não eram meus para chamar sua atenção. E eu continuava sentado naquele mesmo banco da padaria, como se sempre tivesse sabido que em algum momento Clara chegaria com alguns rascunhos debaixo do braço, pronta para começar o romance e pedir minha ajuda em sua produção, como se ela enxergasse por trás dos óculos, do casaco, alguém que também se dedicava a escrever, que vivia esse processo todo cada dia mais. E eu vivia, incessantemente, a buscar uma poesia escondida nas coisas, nas logomarcas, nos letreiros, uma poesia que ia sussurrando de dentro das coisas e justificasse todo aquele desenrolar das horas.
Conheci Clara quando esta precisava de um tempo para escrever. Escrever um romance, ela queria, e queríamos coisas juntos e portanto nos unimos por esse objetivo em comum, como um fio em cuja ponta cada um aperta forte a mão: um fio, um romance.
Clara contou para mim de seu antigo parceiro, um casamento frustrado que não ocorrera em uma igreja mas em uma editora. Eles se conheceram quando ela tentava publicar uns poemas, a editora recusava mas ele a conquistara dizendo que eram poemas bons, publicáveis, que incitavam o que havia de liberdade nas pessoas – que fariam por libertar a liberdade contida, guardada desde Woodstock no coração de cada um. Sentiu que se completavam e foram viajar de carro por aí, ela largou a faculdade e ele a seguiu, ambos em busca de algo que motivasse seu romance. No começo éramos mais radicais, penso, ouvíamos Janis Joplin em som alto, no carro, um fusca velho que mais parava do que andava e não hesitaríamos na hora do refrão, em soltar um grito estridente e rouco – aos poucos, porém, aos poucos passamos a sentir vergonha de gritar com ela e nos restringíamos, assim, a cantarolar o Kozmic blues num sussurro desafinado, cada vez mais silencioso, silencioso, silêncio... Nessa época eu passei a me contentar em fechar os olhos e viajar pelos solos de guitarra, imaginando que eu era feliz. Então, pensei, então hoje você me procura com esse intuito de escrever seu romance? Poderia questionar, discutir, dizer que não estava ali para somente ajudar mas queria também ser ajudado, dizer que tinha muito mais coisas a oferecer para ela e para qualquer outra mulher que passasse por aquele banco daquela padaria naquela manhã, que não era meramente isso que todos viam em mim, um repertório de palavras e frases prontas. Mas não. Me entregava, então, desde aquele momento, à Clara e à seu projeto, e decidi que iria completar os espaços vazios em seu livro, iria preencher seus parágrafos e juntos iríamos criar aquele romance.
Nos mudamos então para um apartamento no centro da cidade, razoável, paguei o aluguel por um mês somente porque não acreditava que o projeto todo duraria muito mais que aquilo, e seguimos em frente. Quando abri a porta do elevador, Clara segurava apenas uma caixa nas mãos onde residiam poucas coisas, objetos pessoais que não preencheriam sequer uma esquina das paredes da nossa nova morada. Convidei-a para entrar e ela entrou, lisonjeada, e ao fechar a porta nos encaramos e percebemos que não sabíamos muito bem o que fazer, ninguém sabe, afinal de contas, nesses primeiros encontros cujos objetivos estão bem delimitados tudo fica muito difícil. Como um casal que combina que vai se amar, encontrar-se naquele estado e sentar-se no chão para começar a escrever qualquer coisa que fosse, um poema, uma lauda de um artigo, tudo seria tão artificial e irrisório e colocaria tanto a perder nossa idéia final que decidi primeiro por oferecer à Clara um café. Quer um café? Disse, e ela assentiu com a cabeça, enquanto investigava o espaço ao nosso redor e se encaminhava para a janela.
Assim que colocou a primeira folha na máquina de escrever, sentou-se no chão de pernas cruzadas, fez um coque displicente no cabelo (trajava uma camiseta grande larga e branca) passou a calmamente esmurrar as teclas daquela máquina e foi assim que nosso romance começava, com a seguinte frase: deveria ser um crime o desamor ou a desunião dos seres, deveria ser um crime zombar do amor e da dedicação dos outros.
Entreguei sua xícara e Clara pegou com sua mão esquerda, sorrindo levemente e dizendo obrigada. Sentei-me ao seu lado e li as primeiras linhas escritas por ela. Não sabia direito o que dizer, não sabia se deveria dar palpites, mas naquele momento descobri que não era assim que se fazia um romance. Um romance, pensei, para ser vivido, teria que ter as mãos de cada um inseridas em sua construção. Não as mãos solitárias, os dedos isolados, mas as mãos conjuntas, simultâneas, até mesmo confusas, batendo teclas ao mesmo tempo sem que houvesse a necessidade de se dizer, premeditadamente, o que cada um deveria escrever.
Não creio que Clara compreendeu meu parecer de imediato. Franziu a testa ao me ouvir dizer isso, levantou-se com a mesma propriedade que todos os artistas se levantam e se dão o direito de saírem de cena e foi para um outro cômodo do apartamento (que, por não ter mobília nossa, poderia tanto ser uma sala quanto um quarto).
Ao final de nosso terceiro dia naquele apartamento, eu já me irritava com Clara e passara a enxergar todos os seus defeitos – as unhas roídas até a base, as cutículas arrancadas com os dentes que sempre deixavam feias marcas sanguinolentas ao redor de seus dedos, a mania de tossir sem colocar a mão em frente à boca e principalmente: o absurdo hábito de não escrever até o final da linha nas poucas folhas de papel que dispúnhamos para escrever seu romance. Clara ia escrevendo, simplesmente, sem sequer pensar em economia de papel e quando lhe ocorria que era bom mudar de linha, ela mudava, sem lógica, sem uma decisão premeditada. Eu fora delegado a um mero expectador de seu processo criativo – às vezes, quando tinha uma dúvida na grafia de uma palavra ou na colocação de um pronome, ela ponderava, roia as unhas e depois o topo de um lápis que usava para prender os cabelos e somente quando o lápis preto soltava cascas de verniz úmidas por sua saliva em seus dentes, ela me fazia a pergunta: o que devo usar aqui? Ia tecendo uma colcha de letras. Cada batida que eu ouvia do teclado no papel era como uma agulha transpassando as fibras de um tecido e o som emitido pela maquina, por mais que àquela altura eu já estivesse enjoado da companhia de Clara, se tornava músicas para meus ouvidos aflitos de música. Eu sempre escrevi acompanhado de som, disse à ela, ao que ouvi como resposta: eu também.
Clara havia trazido junto de suas tralhas alguns discos de vinil e no fundo do único armário que havia sido entregue dentro do apartamento quando eu o alugara, estava um empoeirado toca-discos de 87. Amo tua voz e tua cor, e teu jeito de fazer amor. Dizia a música que passamos a ouvir, um vinil antigo de Kleyton e Kledir.
No final da tarde, Clara sempre parava de escrever e ia para a cozinha preparar um chá ou um café. Mesmo nos dias mais quentes não perdemos esse hábito – o sol entrava pela janela e tornava o apartamento uma estufa. Lá pelas cinco da tarde os raios inundavam o chão de assoalho e parecia que estávamos dentro do próprio sol – eu via tudo em laranja, inclusive a pele morena de Clara que ficava mais morena e mais bonita à cada tarde. Enquanto ela passava o café ou coava o chá, eu aproveitava para revisar seu texto e acrescentar coisas, linhas, redigia mais alguns itens em seu romance e acrescentava, sem sua permissão, o que eu tinha de especial para dar à literatura: o lirismo e a paixão que eu guardava, toda comigo, sobretudo essa falta de opção que eu também tinha, de não poder viver sem a literatura e de enxergar naquelas linhas todas preenchidas e naquelas palavras, união de letras, não um processo de construção mas sim de exorcismo. Sentia Clara em cada letra, assim como ela deveria me sentir em cada correção minha. Aos poucos poderíamos nos conhecer por meio daquelas palavras, escritas, impressas em um papel que também aos poucos se acabava, e fazer um romance se tornava muito mais do que uma tarefa diária, um trabalho, se tornava a reação espontânea de nossos corpos e de nossas mentes.
Foi no sétimo dia em que Clara pensou em desistir: passou o dia inteiro em frente à máquina e não saía nada de dentro de si. Tentei fazer com que ela se acalmasse, apliquei em seus ombros uma massagem chinesa, ela fumou dois cigarros de uma só vez, depois olhou para a janela angustiada e disse saber que não era capaz. Clara já havia começado a escrever dois livros anteriormente – eu sabia apenas do primeiro, aquele que a fizera conhecer o editor que lhe prometera a rota 66 da geração beat. Mas o segundo fora um livro de poemas que chegou a ser publicado e não fora lido por ninguém. Ela me revelou isso enquanto se aninhava em meu colo e me deixava constrangido – há tanto tempo que o afeto para mim era apenas uma palavra, um substantivo composto por cinco letras que eu usava em muitos contos, que eu já não sabia mais como ele funcionava na prática. Em sua bolsa ela guardava um exemplar desse livro de poemas mal-sucedido: uma capa rosa, uma edição velha. Um presente do editor para mim, quando me deixou, disse ela. Escrevi esses poemas dia após dia, quando terminamos nosso encontro de vez, e mandei para que ele lesse. Incapaz de reagir com a reação de um ser humano qualquer, ele disse que iria publicá-los. E assim o fez: foram um fracasso. Em uma folheada no livro, pude perceber que eram poemas primários, coisa ruim mesmo, mas não queria dizer isso ou sequer acreditar nisso porque na minha cabeça bastante confusa não tinha como um poema, esse jato de palavras que sai não da boca, mas de uma mão em chagas que só possui como alternativa escrevê-lo, ser ruim ou ser de qualidade duvidosa. Um poema não tem explicação ou julgamento, pensei comigo. É uma verdade, apenas, uma verdade que se for feia, mal feita, revela apenas isso que somos: feios, mal feitos.
E no fundo Clara era tão solitária que deixava isso transparecer em suas mãos sempre em busca de algo para segurar, seus dedos tão propícios a se enroscarem em curvas, em canos, em cachos do meu cabelo, a minha cabeça deitada em suas pernas, as lágrimas de Clara que escorriam pelo meu cabelo e descreviam um percurso peculiar por entre meus cachos e escorregavam, por final, por minha testa, e continuavam cada vez menos espessas e encorpadas até minha boca, onde eu as provava e concluía: a dor de Clara era uma dor salgada.
Foram duas semanas em que nos trancamos naquele apartamento, dedicados à fina arte da escrita, sem móveis, cercados apenas de alguns de nossos livros preferidos, uma vitrola com todos os vinis antigos, musica antiga, um fogão, algumas garrafas de vinho e, sobrevivendo à base de macarrão instantâneo, nos pusemos a escrever a quatro mãos aquele que seria o romance de nossas vidas, livremente inspirados pelo exemplo mais belo que foi o de Jack Kerouac, que após uma viagem do exterior para o interior também se trancou em um apartamento por algum tempo e se pos a escrever aquela que seria a grande obra de sua vida. Digo isso porque aos poucos seu romance foi se tornando meu, ou, tudo que havia de meu ou dela foi se tornando nosso, e quando Clara passava por seus momentos hiatos eu a abraçava primeiramente e em seguida a afastava da maquina de escrever, com delicadeza, com sutileza e cuidado, e ia esmurrando as teclas na tentativa de imitar seu modo de dizer aquilo que queria. Ao final das duas semanas, nos deparamos com trezentas e oitenta e cinco páginas datilografadas e revisadas, empilhadas ao lado da máquina de escrever no assoalho ensolarado do chão.
Terminamos o livro no final da tarde e ficamos um momento em silêncio, observando o sol mais uma vez invadir o apartamento e nos fazer suar dentro daquela estufa de luz que se tornava a sala de estar.
Quando saímos do apartamento naquele que seria o décimo quarto dia de nossa estada, vimos nas ruas de fora um outono mais ensolarado que aquele que havíamos deixado na porta quando adentramos nosso espaço de criação. Nossa primeira reação foi encontrar uma banca de jornal, afinal Clara queria comprar uma revista e eu precisava de cartões telefônicos, e logo após isso iríamos para uma padaria de esquina tomar um pingado e um pão na chapa (o nosso café acabara no oitavo dia e desde então eu passava as manhãs sonolento sem conseguir despertar direito, até que Clara jogava em minha cabeça uma balde de água fria, simplesmente sussurrando ao meu ouvido: acorde).
A surpresa de Clara foi maior ao não reconhecer a dona da banca, e depois perceber que era a mesma mulher de antes, mas com os cabelos levemente grisalhos e curtos, as rugas que ela já tinha na época em que o cabelo era completamente tingido de ruivo se transformaram em sulcos fortemente vincados ao redor de sua boca. Os meninos que brincavam na rua quando entramos no apartamento, duas semanas atrás, e que ouvíamos constantemente de nosso andar, ao retornarem da escola, agora já eram homens feitos, uns freqüentando a universidade e outros trabalhando. Abismado, segui até a padaria com Clara em meu encalço. O senhor simpático do balcão já não estava mais lá – fora substituído por um novo funcionário, um cearense sorridente com um forte sotaque proeminente. Morreu, disse-nos, ao perguntá-lo sobre o que havia acontecido com o senhor simpático de antes. Clara estava intrigada, mas eu me encontrava tranqüilo. Sabia que em duas semanas muita coisa podia ter acontecido. O tempo passou, ela me disse, eu respondi que sim, que havia passado, mas que ela não precisava ter medo porque tinha agora seu livro pronto, debaixo do braço.
Livres de qualquer compromisso porque entre Clara e eu o único vínculo construído fora rompido assim que digitamos o ponto final de seu romance, me senti livre para perguntar o que antes fora inquestionável. É para ele, não é? Perguntei. É para o editor que você escreve. Para provar que era capaz, não de escrever um romance, mas de vivê-lo, em sua intensidade, de transcrever para o papel cada segundo gasto em frases soltas, em beijos, cada segundo gasto na cama, as mãos entrelaçadas, os dedos, é para ele que você escreveu esse romance. E Clara erguei seu rosto bastante vermelho, um rosto que agora eu percebia que também sofrera as ações do tempo, tinha vincos ao redor da boca também e os cachos eram prateados dessa vez, sim, disse, é para ele que eu escrevi.
Assenti com a cabeça. Não havia muito mais o que fazer se não aproveitar o restinho de tarde e o magnífico sol outonal daquele dia e por isso eu deixaria Clara sentada no meio fio enquanto ela lamentava alguns remorsos restantes, e ia relendo seu romance para pode entregá-lo, intacto, ao seu editor. Pensei em algum boteco do centro da cidade, mas talvez para a hora eu precisasse mesmo do meu café, e de companhia, quem sabe alguns desses senhores que não saem das padarias do centro. A primeira página, entretanto, estava comigo. Não sabia bem porque, nem entendia a finalidade, mas antes de sairmos do apartamento foi Clara quem a retirou cuidadosamente do monte, a dobrara em quatro e a enfiara no bolso de meu paletó. Olhei para trás com cuidado – as lágrimas de emoção corriam soltas por seu rosto sardento e eu via um sorriso que levemente se esboçava. O sol era forte, seu corpo era por demais laranja àquela hora da tarde e eu preferia nem me lembrar das horas e dos dias em que eu passara com aquela garota, trancado no apartamento. Precisava por minha vida em ordem, dessa vez, e o primeiro passo era cancelar o contrato com o proprietário. Abri a folha que guardava no bolso do meu paletó e li com toda atenção, pensando que aquilo que se passara ali dentro fora um sonho: deveria ser um crime o desamor ou a desunião dos seres, deveria ser um crime zombar do amor e da dedicação dos outros.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Intimidade

(Notas para uma possível peça de teatro.)

Ao som de 'Pérola Negra' do Luiz Melodia, os atores entram em um palco vazio com alguns elementos de casa (talvez fotos jogadas no chão, uma máquina de escrever creio que seja uma boa ideia, uma vitrola de onde pode estar vindo a música do Luiz Melodia. Uma luz amarela seria ideal, e talvez ao fundo a ideia de um cenário que represente janelas de um prédio, enfim, uma espécie de sala de estar de um imóvel que está pra ser alugado).


- Após você, adquiri hábitos de higiene. Depois da última vez em que nos falamos, naquele dia em que você estava de malas prontas pra se mudar, aprendi a lavar as mãos para me desprender dos vocês imanentes em mim. Lavei as mãos três vezes, e depois, passei a lavá-las uma vez por hora durante uns seis dias, e agora, cada vez que encosto em alguém eu lavo as mãos na ânsia de não levar esse alguém comigo, esses ácaros de alguém que podem ficar presos em minhas digitais.

- Eu também escovei os dentes e a língua. Escovo os dentes com vigor, esfrego a escova com força sobre minha língua até sentir um leve ardor, um descolamento de camadas, que é pra apagar um beijo, uma palavra que ficou perdida, pendurada sem ser dita nesse vão entre língua, dente e lábio.

- Estou assim, por um tempo, tentando há uns dias falar com você. Você me escapa. Ainda não inventaram uma maneira de apagar um pensamento. Creio que se lavar a cabeça com um xampu forte, um xampu ácido, vou conseguir aos poucos apagar aquela tarde em que passamos juntos, os três, deitados sobre o mesmo colchão. Mas está certo que naquela tarde eu desejava você e ela da mesma maneira, o que me excitava mais era estar ao mesmo tempo com vocês naquele colchão.

- Mas agora, as coisas mudaram?
- Sim, as coisas mudaram, as coisas sempre mudam. Eu olho um horizonte agora onde enxergo um fim de tarde lindo lindo. As vezes, em meus caminhos diários, esses caminhos que vou soletrando com os pés em percursos nomeados ditos casa-faculdade ou faculdade trabalho, eu vejo uns sóis tão fortes (é por isso que creio que sejam mais de um) e penso em você. Tenho pensado em você incessantemente.
- É?
- É?
- De que forma?
- Não como um amor perdido, um travo de garganta, nada disso, te vejo como um amor consumado, como uma espécie de sala de aula. Aliás, te enxergo nas lousas das salas de aula também. Você é uma professora, no fundo. Nem um pouco didática, saliento, porque faz seus alunos sofrerem.
- Eu me sinto tão sozinha, por aqui, às vezes. Eu ando por essa cidade que eu não conheço mas finjo conhecer e falo com esses amigos que eu não conheço e finjo conhecer. Troco de nome, invento apelidos. As pessoas aqui me chamam de um jeito que você nem pode imaginar. E elas não sabem que houve um passado antes delas, elas me enxergam como uma coisa pronta, e as vezes é assim que eu também me enxergo por essas bandas daqui, uma espécie de obra de arte acabada.
- Você se esquece que um dia você era uma massa inerte de argila né? E que foram vários artistas que te esculpiram, minimamente, eu fui um deles. Acho que desenhei suas mãos, foi isso. No começo aquele barro todo que se amontoava nas pontas de seus braços não fazia sentido nenhum. Depois eu fui moldando, apertando aquele barro por entre meus dedos e desenhei sua mão nessa argila. Ai ai, ai você ficou tão presa em minhas mãos que tive que lavá-las por seis dias seguidos, três vezes, mas ainda restavam uns trechinhos de você debaixo das minhas unhas.
- Não era culpa minha. Eu me sinto tão sozinha por aqui, às vezes. Mas vou a festas, dou risadas, bebo todas e me deixo amar e ser amada sem cadência nenhuma, procurando apenas me divertir.
- É. Eu procuro fazer o mesmo. Mas devo admitir que ultimamente quando aponto para a frente indicando um caminho para alguém, ou mesmo contando uma anedota, quando gesticulo muito e tenho por hábito gesticular enquanto falo, eu ainda acho umas bolinhas dessa argila na superfície das unhas.
- Você mudou tanto.
- Estou nostálgico. Ando nostálgico esses dias. Tenho conversado muito com ela, me faz bem nossas conversas. Me aconselhou (ela) a procurar um médico, tratar minha doença, fazer exercícios, comer verduras, tomar chá verde, largar os vícios e virar vegetariano. Ela disse que tudo isso mudou a vida dela. Ando precisando mudar a minha.
- Você envelheceu, acho.
- Envelhecemos. Ainda que não saibamos o que isso exatamente significa.
- Eu sei, um pouco, acho. Envelhecer é olhar pra trás e ver que sua vida já tem história desenhada.

sábado, 22 de maio de 2010

Morangos Mofados

It's getting hard to be someone, but it all works out
It doesn't matter much to me.

"No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se movia. Era dentro disso que precisava mover-se, sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo - e queria? Enumerava frases como: "é-assim-que-as-coisas-são" ou "que-se-há-de-fazer?", ou apenas "mas-afinal-que-importa?". E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofados, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta. " (Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu)

domingo, 16 de maio de 2010

Possessão

(ou a transformação por Twitter)

3:20. Começa a possessão pelas pontas das unhas, vai se espalhando pelo corpo todo, braços, pernas, se estende da ponta de cada pelo eriçado e penetra nos poros, vaza e escorre epiderme abaixo. Eram pequenas cápsulas desse algo negro que, quando inteiras, são inofensivas. Mas um banco onde estava quebrou e, ao cair, estouram as cápsulas e o seu conteúdo negro vazou e me invadiu por completo.

3:35. Os primeiros sinais dessa possessão de manifestam e causam minha inquietude. Olho para minha mão e ela já se encontra enrugada, as unhas meio escuras e frágeis. Ponho as mãos no bolso mais do que rápido para que os outros não vejam, mas não creio que era possível esconder. Talvez fosse pela distração dos outros. Os outros, eles, conversam e se amam discretamente pelos cômodos, e eu entro no banheiro a cada segundo para verificar indícios de minha possessão – uns fios brancos na sobrancelha, bolsas que se formam, sutis, sob meus olhos. Está bastante escuro, madrugada, e todos os outros se encontram um pouco bêbados, creio que não perceberão.

3:39. Nos deitamos na cama de casal e os outros dois conversam sobre amenidades. Tento disfarçar a possessão virando de bruços porque sei que minha cara a essa altura já demonstra indícios claros – uma das minhas mãos já se encontra parcialmente negra e manchada, as marcas da velhice e da idade. Tenho vontade de chorar, mas não posso fazer isso ali, descaradamente, porque chorar é um crime tremendo naquela circunstância. Por isso desço as escadas rumo ao jardim, já vazio dos outros, mas não tenho coragem de ficar sozinho porque sei que assim que fizer isso, a possessão se dará por completo. Volto pra cama, falo alto, converso sobre coisas diversas afim de mantê-los acordados – quem sabe se, acordados, os outros impedem que esse processo se dê por inteiro?

4:00. Deixei os outros dormindo. Todos também dormem, amados, e eu penetro a escuridão da rua sem saber para onde ir, que caminho tomar, a forma negra que se sobrepõe ao meu corpo me torna invisível naquela negritude estendida pelas avenidas. Desobedeço umas indicações, tomo outras, e quando percebo estou perdido e isso estranhamente me excita. Sinais evidentes de uma possessão semi completa,

4:22. Resolvo ligar para pedir ajuda já sabendo da ineficácia. Os outros dormem e deixaram dormindo consigo uma pessoa, jovem, conhecida, e ao ouvirem a voz de um ser absolutamente peculiar no telefone, certamente pensarão que é trote. Um atende, não reconhece a voz – ela treme porque assim faz o corpo do possesso, de medo, de frio, de angústia acumulada sendo liberada em jorros vertiginosos. Desligo o telefone porque não adiantava mais fugir daquilo.

4:40. Me encontro completamente possuído. A sensação boa que é se deixar levar paga qualquer dano. Ando agora encarando a todos, peito inflado, um queixo erguido e violento, espero não cruzar ninguém. Resolvo ligar mais uma vez e ao que o outro diz alô e eu abro a boca para responder, escuto um latido que se emite de minha garganta.

5:00.

6:00. Durante o processo em que a possessão se completa, as patas me impedem de digitar sobre o teclado. Retornar a forma humana é duro, mas graças a Deus consigo atingi-la assim que o sol nasce e estendo, não a pata mas uma mão para uma lotação que vem adiante e ela para e eu vou embora sem que ninguém desconfiem de minha possessão.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Os casais e os sozinhos.

Casais. Casais para todos os lados. Nos vagões de metro, amarrando o cordão de suas blusas, dividindo seus chocolates, casais descendo na escada rolante, deitados no sofá no meio da sala escura, a TV desligada, subindo a rua Augusta, gente junta, um amor vazante e uma espécie de felicidade para esfregar na cara alheia, soando a risadas, ironias, que maldizem os sozinhos.
Os sozinhos, estes, arrastam-se pelos cantos vivendo um verso do Cazuza, migalhas dormidas do seu pão. Os sozinhos, porém, não se unem - orgulhosos demais para aceitar sua condição de sozinhos, não percebem que um casal é tudo aquilo que é de dois e que se ama, e que se eles se unissem, e se amassem, deixariam de ser sozinhos para se tornar um casal.
Ah, o amor! Esse mistério, esse produto tão caro e tão bem cotado em mercados internacionais, bolsas e pregões, esse minério raro do pré-Cambriano pelo qual eu daria um cheque pré-datado sem sequer ver sua aparência. O amor é um teatro.

Descrença

Um ímpeto ou uma idealização de momento; caminhos errados, a mão no lugar errado, a cabeça em um ombro alheio, uma descrença no que se prosseguirá assim que ela terminar sua frase, como se eu fizesse qualquer coisa só para cumprir um ritual, dar um ponto final a uma frase. Acho triste, mas aceitável que eu faça isso: agir. Mas torna-se tão incoerente essa ação quando vista após umas horas, com um distanciamento. Vou me sentir outra vez idiota, vou sentar novamente como idiota e ler como idiota que vou sendo, essas atitudes, elas me queimam aos poucos nesse sentido de simplesmente estar sendo. Seria fácil não ser eu. Como se um turbilhão me invadisse, eu pareço querer fazer as besteiras que faço só para depois poder lamentá-las embalado por sons que conheço de cor, como se ouvindo, nesses casos, Luiz Melodia ou Maria Bethânia, fosse ajudar, fosse causar esse promissor bálsamo à justamente uma atitude irremediável. Por que eu me perco as vezes nesses labirintos meus se fui eu quem os criou, ou melhor: se eu sou esses labirintos, sem concessões, sem frescuras, me assumo como esse amontado de paredes dispostas de forma irregular que monto feito um quebra cabeça para depois, ao brincar por entre elas, esquecer sua ordem, me perder e me machucar. Propositalmente, acredito. Qual é a profundidade disso tudo? Qual a necessidade de me apresentar assim, dessa maneira?, prazer, Leonardo, eu sou um cara pra lá de complicado.

domingo, 9 de maio de 2010

Perder tempo

Já que eu andava por esses tempos reclamando tanto da falta de descanso, do cansaço, do sono que ficava cada vez mais insuficiente se restrito ao meu período de cama e transformava, também em minha cama, os bancos dos ônibus que eu costumo pegar, já que eu reclamava dessas coisas, pronto, agora me deram esses dias inteiros para desaproveitar. Ando num contínuo desaproveitamento. Não sei o que fazer com tanta liberdade de horas e tempo, parece até estranho dizer isso, mas após me submergir nessas rotinas que foram meus primeiros meses de 2010 eu creio ter desaprendido a descansar. Essa doença da qual eu sofria ano passado, o excesso de tempo, me faz fazer as coisas cada vez menos. Ainda sim, ano passado eu tivesse uma meta objetiva, algo que me impelia a ocupar sumariamente meus dias. Mas esses tempos de agora não me atraem nem me impelem a fazer nada, pelo contrário, se arrastam assim como uns minutos pegajosos escorrendo numa parede áspera. Acho que, de fato, é um retorno ao meu estado do ano passado. Até Adriana Calcanhotto eu voltei a ouvir (ano passado eu passei por uns meses de vício nessa mulher, ouvia diariamente, todos os seus CDs, indo pro cursinho de manhã). Ai eu vou olhando pro lado, pelas estantes abarrotadas que cercam meu computador, e vou vendo os livros todos, On the road, Todos os fogos o fogo, Prazeres da Noite, A sangue Frio, Ficções, todos começados e misturados em suas metades, e mais alguns textos para ler para a faculdade, a filosofia de Hume que eu não entendi e agora tenho tempo para entender, mais os artigos do Charadeau, Burke, Freud e Maria Rita Kehl, e novamente, eu com um tempo absurdo podendo dar conta de toda a teoria da comunicação e da linguagem, e aqui, parado, vendo o dia passar atrás da janela, ouvindo Mulher sem Razão, ai ai, que tédio.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O derramamento das faces

Hoje a noite volto para a casa, após deixar Beatriz Castaneda na porta de seu apartamento em Higienópolis e subir por uma ladeira e virar a direita após cruzar as três ruas, como ela havia me indicado, alcançando a escada da estação Marechal Deodoro do metrô.
Quando era mais cedo, pensei verozmente em Daniel e em tudo que Daniel já significara para mim, em meu amor e amizade de irmão, e em como doía agora saber que já não era mais tão presente em minha vida e não sabia de minhas conquistas. Sismei em arranjar um encontro com Daniel, e talvez fosse possível se me prostrasse, à hora do almoço, frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, esperando que ele saísse com seus colegas portando uma bolsa a tiracolo e com os cabelos curtos, bastante baixos, uma diferença circunstancial frente aos cabelos cacheados que ele usava quando nos conhecemos. Mas havia uma preguiça em pensar nessa conversa que significa ir, aos poucos, derramando todas as passagens de minha vida que acontecera durante esses anos em que não nos falávamos – comentar sobre o teatro, as peças em cartaz, o prêmio do teatro universitário, e dividir com ele a recente viagem para Amsterdã.
Antes de cumprimentar os dois porteiros, Beatriz Castaneda vira-se para mim e pergunta se eu não iria demorar demais para chegar em casa, posso chamar um táxi, diz, e eu recuso, recuso veementemente, afirmando que chego em casa num instante após entrar no metrô. Minto. Possuo essa opção de mentir como uma dádiva, um remédio paleativo, e verter essa mentira sobre o roteiro que se desenha ao nosso redor, nosso espaço extralingüístico, é uma opção e uso-a com todo meu empenho. Chego em casa num instante, Beatriz, e subo as ruas em direção à estação, arfando.
Algo no rosto de Beatriz me lembra Carola. Depois que partiu, vejo Carola em todos os instantes, em rostos alheios, a face derretida que pinga sobre outras diversas faces, mas algo no rosto de Beatriz me lembra Carola, seu nariz meio turco, a pele branca, Beatriz me dizia que era judia e eu acreditava piamente porque fazia sentido – ela costumava levar faláfs em potes herméticos para comer nos intervalos das aulas e morava em Higienópolis. Já havia desconfiado que Beatriz me lembrava alguém, mas talvez um espaço em branco em minha mente, desenhado ou apagado pela dor da ausência de Carola me impedia de entender essa ligação. Daniel, que se apagara juntamente com Carola, ia se desenhando sob o rosto de um outro colega, alguém cujo nome eu não sabia mas que sentava diariamente próximo a mim por algumas aulas. Conversamos algumas vezes e sua risada era igual, embora fosse um pouco mais moreno e tivesse os dentes tortos. No caminho até a casa de Beatriz, pergunto se ela conhece aquele rapaz que sentava na fileira da frente, e ela diz que sim, ele mora em meu prédio, diz ela, por que? Não é nada, lembra um amigo meu. Ela vira a cabeça para a janela do ônibus e, de perfil, ela me remete a Carola ainda mais, os detalhes hebraicos de sua boca, seu queixo, mas Beatriz possui os cabelos lisos, um tom de castanho que beira o loiro, e era escusado pensar que Beatriz parecia Carola porque quando Carola virava-se de costas para mim ou mesmo de lado, meu nariz era logo afagado pelo cheiro floral daquela massa de cabelos ruivos e cacheados, presos de qualquer modo por um grampo de ponta descascada – os grampos, todos, Carola mordia com aflição antes de usá-los.
No primeiro vagão em que entro, vejo mudos (ou surdos?) conversando em libras e acho extremamente bonito. Tenho esse dom de achar as coisas bonitas, os gestos, entre dedos e sinais vou buscando as palavras e tento descobrir se são mudos ou surdos efetivamente. Havia alguém que comentara sobre o grito do afásico. As mãos me remetem às mãos de Carola, os sinais que ela também falava com seu irmão, este sim era surdo. É um afásico, dizia Carola, de fato não aprendeu a ler ou a ouvir, ele emite sons e os sons emitidos por ele eram como grunhidos, porcos ou cavalos indignados, gritando por fome, dor, desespero. Segundo Lyotard, o grito do afásico era a verdadeira comunicação, a expressão genuína do que há de mais transversal em nossa linguagem. O grito do afásico é genuíno, digo, e Beatriz me pergunta do que estou falando. Beatriz Castaneda, já te disse que parece demais com o grande amor da minha vida? Ela sorriu enquanto contava sobre seu namorado, o homem que tirou sua virgindade e por quem ela sentia ainda imenso amor. Não saberia se desvincular dele tão facilmente, a visão dos corpos estirados na cama lado a lado, a ansiedade do momento, magicamente Beatriz foi se desenhando para mim, pude perceber que além do rosto de Carola ela possuía também o riso de Carola no canto do lábio fino, umas sardas típicas de gente ruiva ou judia, ia tremelicando a medida em que ficava encabulada com minhas cantadas.
Ao me despedir de Beatriz Castaneda, subo a rua rumo ao metrô e atravesso três ruas iguais, sendo que na terceira encontro o rapaz que me lembrava Daniel, descendo pelas ruas com um cigarro aceso entre os dedos e me dá um sorriso tão amarelo quanto seus dentes, um sorriso afásico, um sorriso em libras, típico daqueles que não tem certeza se se conhecem, acho engraçadissimo o fato de que posso não conhecê-lo, tampouco saber seu nome, mas sei seu rosto há um tempo impreciso, desde que Daniel e eu brincávamos no hall entre nossos apartamentos, quando nem sonhávamos que um dia ele iria roubar Carola de mim, que um dia eu iria estar nessa rua reconhecendo sua face na face de outro homem com quem não tenho intimidade nenhuma. Tudo bem? Ele diz. Tudo certo, acabei de deixar Beatriz em casa. Ele se mostra consternado, talvez a pressa, ela me disse que vocês moram no mesmo prédio. Sim, é verdade, ele diz e acena um tchau, se despede, e desce a rua.
Descendo a escada, vejo os mudos (ou surdos) conversando em sinais e descubro que o tempo era uma grande bobagem. Não via Carola fazia meses, um ano talvez, e eu tentava veementemente não me esquecer dos detalhes de seu rosto, ele havia sido apagado em minha memória mas não em meu coração, eu enxergava as linhas que circundavam sua boca porém mais do que isso, eu enxergava as linhas que saiam de dentro dela, a continuação de suas veias, sua língua, eu ia buscando esses detalhes de Carola por entre as coisas, pelos lugares onde eu passava, enquanto os mudos continuavam a fazer sinais tão bonitos que eu ria, eu observava pelo vagão as pessoas e a memória de Beatriz Castaneda ia ficando avivada, mas aos poucos, como em um retrato que eu pudesse apagar e redesenhar, os cabelos castanhos de Beatriz Castaneda foram se encaracolando e tornando-se ruivos e eu me lembrava do dia peculiar em que eu subia a rua do colégio de freiras onde Carola estudava e encontrava Daniel – Daniel com o sorriso amarelo no rosto, pego em um lugar estranho, o que você faz aqui do outro lado da cidade? E Daniel assumia que viera encontrar Carola, vim encontrar ela, dizia, é melhor acabarmos com isso de uma vez, dizia cabisbaixo, incomodado, preciso ir logo, nós nos amamos, e naquele dia eu perdia minha mulher e meu melhor amigo.
Antes que o apito soasse e a porta fechasse, eu entendia como que por uma epifania que Beatriz Castaneda era Carola e o rapaz que morava em seu prédio era Daniel, as faces de uns derramadas sobre suas caras, os cabelos diferentes, aquisição de outros hábitos, Daniel com um cigarro nervoso em suas mãos, e quis gritar o grito do afásico, por que Carola e Daniel faziam isso então?, para que senão para estarem perto de mim?
Antes que eu pudesse correr, que pudesse retornar ao apartamento de Beatriz Castaneda, de alcançar Daniel na curva da rua, a porta se fecha e sinto que era tarde demais, mesmo que eu descesse na próxima estação e fizesse o trajeto de volta, mesmo que eu ligasse, algo se perdia, uma oportunidade. Me sento fatigado em um banco e observo, calmamente, os mudos (ou surdos?) conversarem entre si.
Uma massa de cabelos ruivos me chama atenção mais a frente. As pernas finas cruzadas, uma elegância de mulher magra e pequena, poucos seios, uma blusa lisa, a mulher sentada logo a frente que eu tento enxergar e parecia ser Carola me confunde. Meu coração dispara em um tom musical, um descompasso, penso estar louco e não consigo enxergar sua face porque do lugar onde estou os surdos (mudos?) se sobrepõem ao rosto da mulher ruiva. Logo ela se levanta, a face derramada, e descubro que ela não é Carola mesmo e também não é ninguém. O rosto de Carola fica despejado, vertido sobre uma bandeja incólume que se chamava Beatriz Castaneda.
(Volto para casa, esta noite, com uma sensação de vazio que me consome, e vou descendo pelas ruas, aos poucos, me desfazendo do que sobrava de mim em mim, me livro primeiro de um maço de cigarros vazio, depois de um par de óculos, depois abro a minha bolsa sobre uma cesta de lixo e deixo os papéis todos caírem com liberdade de meretrizes ou garotos de rua, e vou descendo mais e mais, vou deixando pelas ruas as provas desse crime irrefutável e passional que sou: eu. Antes de chegar em casa eu ainda abro minha carteira e queimo, junto de meus documentos, as fotos de Carola e de Daniel que eu guardava, e também a foto que eu tinha com Daniel, abraçado, em meu aniversário de quinze anos. Abro a porta de casa e, ao adentrar a sala de estar, passo incólume sobre as caras assustadas de meus pais que se perguntam, certamente, quem é esse estranho que invade nosso lar? Mas antes que eles se mexam, eu sigo até a porta do banheiro, adentro o ambiente, ligo a torneira e lavo de minhas mãos e pescoço os últimos pedaços que iam se soltando, levemente, de mim por mim, e ao erguer o rosto para o espelho não vejo nada além de uma face em branco).

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Elucidar.

é tornar a mensagem de outrora em texto
(mas eu sempre me perco nas transcrições).
Porque no andor da vida comum, nunca estamos preparados para quando a poesia chega
(e quando ela chega, não respeita nada: atropela pelos olhos, as lágrimas, a alergia, gera uma tosse, um sono incomum, um fluxo de ar de dentro para eu mesmo e preenche qualquer falha do corpo com excesso de matéria)

terça-feira, 27 de abril de 2010

O parasita da Farmácia, a função de uma universidade e como seus alunos são selecionados.

Semana passada, um período que circula pelos e-mails dos alunos da Faculdade de Farmácia e Bioquímica da USP incitava os alunos a "...jogarem bosta num casal de viados...". Prometia, àqueles que fossem responsáveis pelo feito, entrada gratuita em uma tradicional festa realizada na Farmácia, a Festa do Brega. Os autores do "concurso" alegavam que a faculdade estava repleta de homossexuais que desmoralizavam o ambiente acadêmico e, para tal, convidava os alunos a "combatê-los".
Coincidentemente, na mesma semana, mais precisamente sexta-feira passada, tivemos um incidente com uma professora que tem o curioso hábito de faltar nas aulas quinzenais (assim estabelecidas por ela, sem qualquer tipo de consulta aos alunos). A professora mais uma vez faltou na aula e mandou um e-mail avisando no mesmo dia, o que fez com que vários alunos (principalmente os que moram longe - EU!) atravessassem a cidade e, ao chegarem na USP, se deparassem com a notícia.
Eis a pergunta: coincidentemente? Sim, coincidência. Coincidência não pelo fatos em si, mas pela repercussão que ambos tiveram nos alunos e colegas, uma repercussão que, a meu ver, denota uma série de coisas.
Somos uma turma de jornalismo. Essencialmente, o jornalismo é uma profissão que se baseia na crítica, no questionamento. Quanto a isso não me refiro ao campo ideológico, absolutamente, porque independente do posicionamento, independente de censura de editor, de orgão governamental, o jornalismo é crítico, até mesmo na prática do mau jornalismo, do sensacionalismo, etc. Mas me preocupa extremamente ver uma reação tão apática dos futuros jornalistas que serão formados por aquela escola em relação a esses dois fatos que se passaram na universidade.
Em primeiro lugar, o incidente da Farmácia me indignou profundamente. Depois de ter vivido três anos maravilhosos e de pura liberação intelectual e convivência (no real sentido da palavra) dentro da ETE Getúlio Vargas, durante meu saudoso Ensino Médio, e depois de um ano no cursinho, que apesar de ter sido um ano de restrição, foi onde eu conheci meus grandes amigos e acima de tudo, cabeças brilhantes, eu me recuso a acreditar que esse pensamento tão baixo e retrogrado esteja presente em uma universidade. Isso me remete a minha antiga escola, o colégio bairrista onde eu estudei durante o Ensino Fundamental, uma escola particular que fazia jus a qualquer High School de filme americano (com direito a índices de popularidade, roupa da moda, jornal de fofocas, enfim...). Nesse antigo colégio, repito, bairrista, com crianças de 12, 13, anos, hormônios à flor da pele e uma contenção sexual pra lá de grande, que havia esse tipo de brincadeira, "viadinho, bichinha...", e se costumava apontar e desmoralizar aqueles meninos mais afeminados, que andavam com as meninas, eram bons alunos, enfim. Me espanta, sinceramente, chegar em uma universidade que se diz a maior do país, cujos mestres e doutores enchem o peito para falar de sua produção intelectual e ver esse tipo de coisa como o que aconteceu na Farmácia. Podem me achar exagerado, achar que uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra, mas eu digo que tem sim em duas instâncias: 1) Porque se pessoas com essa mentalidade tem acesso a vagas de formação científica dentro de uma universidade fomentada pelo dinheiro público, é porque sua seleção é bastante incoerente; 2) Porque não houve repercussão interna na faculdade. Externamente diversos orgãos se mobilizaram, mas dentro da USP, o que vejo são alguns poucos C.A.s escrevendo "cartas de repúdio".
Voltando ao caso da professora que faltou (que já faltava e que, certamente, faltará eternidade afora), volto a dizer: a seleção dos alunos é equivocada por demais. Não quero entrar em um juízo de valores, não quero estabelecer maniqueísmos, mas dentro de uma sala de jornalismo o que eu esperava era, minimamente, um questionamento adulto, conciso, bastante frio inclusive. Ouvi coisas desde "...se a professora ficaria ofendida com alguma manifestação nossa" até "eu não fui prejudicado pela falta dela" me deixaram desacreditado. Outros, já bastante passionais, canalizando sua rebeldia revolucionária de forma errada, queriam "quebrar o pau com a mulher". Enfim, de um modo ou de outro, essas atitudes me desacreditam, porque, independente de gostarmos ou não dela (e eu até gosto!), cobrar de uma profissional que ela seja pontual, que ela cumpra seu cronograma, que ela evite atrasos, que ela seja correta e respeite seus alunos assim como nós a respeitamos, não é nada além do óbvio. Não é nada além do que se cobra em empresas, em jornais, no mercado de um modo geral.
Nesse quesito, enxergar um conformismo tão explícito nos colegas me deixa meio estarrecido com o que se propõe a ser feito no jornalismo no futuro. Com o conformismo não se muda nada. As vagas de cada um de nós em uma universidade pública são custeadas pelos impostos pagos pela sociedade. De um mau encaminhamento desses impostos já basta o que é desviado por esquemas políticos do alto escalão governamental. Agora, sobretudo, se essa sociedade vai continuar alimentando esses futuros profissionais da imprensa, que não sejam profissionais conformados. Que se revoltem ainda com o preconceito, com a discriminação, com o descumprimento de regras, com a desorganização civil. Espero que a cabeça de alguns mude ou que se mude a forma de selecionar a entrada deles na universidade.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Blablação.


"Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer."
(Álvaro de Campos)

Existe, no teatro, uma técnica de improviso e treinamento de dicção e fala cujo nome é Blablação. A técnica consiste em falarmos com palavras desconhecidas, emitindo sons sem nexo algum, de modo que pareça que estamos falando em outra língua, totalmente desconhecida pelos ouvintes. Gesticula-se, esbraveja-se e por meio dos gestos o emissor busca uma compreensão do espectador uma vez que o entendimento verbal está totalmente comprometido.
Às vezes me sinto falando em blablação para os outros. Tento me fazer compreender, algumas frustrações, reclamações, dúvidas. Recebo, frequentemente, um sorriso amarelo em resposta ou – o que considero muito pior – uma resposta que em nada condiz com minha pergunta. Isso ocorre frequentemente quando converso com minha mãe, por exemplo, que tem o dom absoluto de interpretar errado tudo aquilo que digo.
Não posso, porém, culpar os receptores a minha volta. Cada vez mas eu sinto que a falha está em mim, no meu modo de dizer as coisas e tentar fazer com que captem meus sinais. Mas tampouco me culpo porque exprimir em palavras algumas idéias é tão difícil quanto entende-las. Isso tem ocorrido mais do que frequentemente quando tento explicar aos outros minhas propostas de reformulação do curso de jornalismo da ECA. A sensação que eu tenho, ao debater alguns tópicos fundamentais com outros colegas, é que entramos em uma discussão impertinente que muitas vezes sequer diz respeito ao ponto principal que eu, outrora, defendia. Por vezes esses questionamentos todos cansam, irritam, e o debate se torna um cachorro correndo atrás do próprio rabo – que, após inúmeras voltas, está tão cansado que desiste da tentativa.
Vontade não me falta em falar o que não é inteligível de uma vez. Chutar o pau da barraca para completar esse processo todo, passando a falar uma língua só minha. Sem necessidade de ser entendido. Se não me engano o Arnaldo Baptista fez isso certa vez – ficou sendo conhecido como louco, claro. Mas eu entendo, sinceramente, porque falar, falar, falar, repetidas vezes sem um fio de compreensão por parte dos que te cercam cansa. E muito! Ficaria tudo na intenção e a necessidade de se esforçar para promover a interpretação seria dos outros – não mais minha, agora sequer ligando para me fazer entender.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Essa ingrata profissão.

Voltando da lanchonete que se localiza no prédio de Artes Cênicas, eu e mais duas amigas conversávamos sobre os cursos. Das Cênicas ao prédio de Jornalismo, passamos por todos os cursos da faculdade: Artes Plásticas, Música, Cinema, Publicidade, Relações Públicas e enfim chegamos ao nosso. Fazendo observações à respeito de cada uma daquelas profissões, descobrimos que a nossa em questão é a mais mal remunerada, a mais mal vista e que mais põe em cheque as convicções ideológicas e ética do profissional.
De certo modo sinto que existe uma injustiça cometida por algum orgão invisível com o jornalista. Esse profissional que historicamente ganha mal, que muitas vezes é enxergado como um fofoqueiro da história, um inconveniente, é ainda por cima um cara que adquire todos os problemas da sociedade para si sem, entretanto, ter alguma vantagem com isso além de um hipotético alívio de consciência. Um outro amigo da faculdade diz que não se deve cobrar reconhecimento por atuação social, se não isso vira caridade. E concordo. Entretanto, trabalhar em prol de uma sociedade que mal valoriza seu trabalho é dose.
Chegando ao nosso prédio, fomos para uma aula que diz respeito à legislação, ética profissional, enfim. Segundo o professor, no meio de sua explanação, o intelectual é o ser que não possui acordos com as grandes empresas. "Desconfiem de jornalistas que fazem par com a grande imprensa", disse ele. De fato é uma questão decorosa, essa. Discutida em todos os debates dos quais tenho participado, núcleos de discussão sobre o curso, fórum disso, daquilo, enfim, ódio à grande imprensa. E eu realmente discordo da maioria das posturas que ela adota dentro das possibilidades midiáticas que nos são oferecidas. Mas aí, somado à todos os outros fatores que já inoportunam nossa profissão, aparece o fato de que os bons empregos disponibilizados no mercado estão contaminados por uma indecência mercadológica tremenda. Desse modo, não sobra muita saída ao jornalista, principalmente aquele formado em universidades públicas que tem constantemente o contato com os problemas sociais enfrentados por instituições do gênero.
Ora, somos mal pagos, nossa conduta é sempre discutível e discutida e quando temos a oportunidade de ganhar razoavelmente bem ou ter uma carreira estável, precisamos necessariamente deixar de lado qualquer convicção que nos tenha motivado (e que me motivou, sim, sendo bastante sincero, a escolher essa carreira) e pôr a consciência que nos resta à prova. Soluções para a prática do bom jornalismo sem aliança partidária ou sindical, com a certeza de que será possível pagar uma prestação no fim do mês e que nos sobre, ainda que um pouquinho, a sensação de estar fazendo algo de bom para a sociedade... alguém sugere?

quarta-feira, 31 de março de 2010

Jornalismo Literário ou New Journalism.


Ao mestre Capote, com sangue frio.

Após o julgamento do casal Nardoni, responsável pela morte da menina Isabella, ambos foram considerados culpados e encaminhados para a penitenciária onde cumpriram, resignados, a sua pena. Alexandre trabalhava no almoxarifado, sempre quieto, e Ana Paula Jatobá lia a Bíblia diariamente. Não se sabia se tratava de uma tentativa de se redimir perante Deus ou a sociedade por tirar a vida de uma criança indefesa, visto que o casal jurava inocência, ou se agir daquela maneira fazia parte da construção de um perfil exemplar que contribuísse no pedido de recurso. A história dos Nardoni foi esquecida, aos poucos, sendo lembrada somente no dia em que Isabella faria aniversário, mas cada vez com menos alvoroço, menos furor, até surgir no rosto dos ancoras que davam a notícia, nos anos posteriores, um sorriso. Passaram a dizer assim: e hoje, a menina Isabella completaria dez anos. Quinze anos. Sorrindo.

Após onze anos de prisão, o casal Nardoni já poderia cumprir a pena em regime semi-aberto, quando ocorreu na penitenciária do Tremembé uma rebelião. Os presos se organizaram, fizeram motins, queimaram colchões, cortaram a garganta de guardas e chegaram a uma resolução curiosa: iriam assassinar Alexandre Nardoni.

Às 18:00 daquele dia, dois presos, Josimar Melo da Silva, mais conhecido como ‘o Carrasco’ e o outro um travesti que se identificava por Aninha Jatobá (sugestivo, não?) arrastaram Alexandre pelos corredores do presídio e, com as mãos ao redor de seu pescoço, tentaram sufocá-lo. Quando os olhos de Alexandre ficaram injetados de sangue e seu rosto começava a se desfigurar daquele modo que somente as pessoas que morrem sem ar ficam, Aninha Jatobá soltou seu pescoço. O Carrasco carregou Alexandre alguns lances de escada no colo, levando-o para o topo do pavilhão 1 do presídio. Chegando em uma sala cuja grade havia sido arrebentada, Alexandre foi arremessado para o chão diversas vezes. Uma, duas, três. A cada vez que batia no chão, seu corpo tremia e mal ele podia reaver a consciência, já era novamente arremessado. Após os ferimentos começarem a surgir em seu corpo, o Carrasco empurrou seu corpo inerte pelas frestas da grade arrebentada, segurando-lhe pelas duas mãos: o corpo de Alexandre ficou exposto, de modo que Aninha Jatobá pudesse vê-lo do pátio da penitenciária. Ela calculou o ângulo e fez um sinal afirmativo. O carrasco então soltou o primeiro braço. Alexandre ficava preso por uma mão só, o corpo distendido, o peso de toda a sua culpa sendo segurado apenas por uma mão. Primeiro a mão direita liberada, depois a mão esquerda, e Alexandre caiu no vazio não sem antes balbuciar a palavra ‘perdão’.

Obs: quando a rebelião foi contida e o Carrasco e o travesti Aninha Jatobá foram questionados se eram ou não autores do crime, eles negaram veementemente, dizendo que havia alguém no edifício que fora responsável por jogar Alexandre daquela altura. Sem conseguir conter o riso, entretanto, um repórter questionou se fora um possível ladrão. Aninha Jatobá não perdeu a classe, nunca perdia, e replicou que ladrões numa penitenciária são o que não falta.