domingo, 26 de setembro de 2010

Entre santos

Uma propaganda anuncia e me induz a comprar a margarina Becel – ela diz que faz bem ao coração. O meu anda abalado – não ferido ou magoado, mas talvez constrangido pelo que ele deseja. Encabulado. Sobretudo alimentado por um sangue venoso de dúvidas – as veias que ali chegam trazem consigo incertezas e as artérias não saem vazias. Entopem-se dessas incertezas. Vai ficando contaminado. Tosse seca, alergia e um constante cheiro de tinta branca e fresca sai do meu nariz ao passo que também o respiro. Enfim, uma confusão. Essa noite meu coração está aos pulos com desejos obscuros e recém chegado de um passeio noturno pela cidade quente. Ontem dormir de janelas abertas, mas hoje me abraço no agasalho – não sei se é frio ou se meu sangue bombeado por esse frenético me descompassa o corpo e a pele do que devo sentir pelos ares da realidade. Meu coração te imagina, te imagino sem a mente e apenas sinto sem saber se é certo, errado, moralmente aceitou o adequado a nosso atual estado de distância; enorme. Aproximadamente 250 km, de são a são. Entre santos, ficamos (fico) numa espera meio doida, na impossibilidade de consumar desejos, comendo pão com margarina Becel para acalmar o meu coração. Você não sabe de nada, nunca. Você dirige na contramão. Você dá risadas irônicas quando não pode zombar de mim, porque falo sério e quando eu falo sério eu não gosto que brinquem (ninguém gosta). Rasgo essa tua ausência com palavras e dúvidas. Atordoado fica meu coração – não rabiscado ou ferido de amor. Mas dúvidas. E quando eu penso e quanto mais eu penso eu vejo que deixar essa sensação é uma regra normativa, é imposição sobre escolha, eu enxergo que todo coração é formado por pontos de interrogação: um sim, um não.
(Assumidamente, fiquei puto. Você não merecia que eu escrevesse sobre você. Você não merecia sequer que eu pensasse em você, em te encontrar no Parque Buenos Aires, você merecia que eu te calasse em minha memória e te tornasse um objeto obtuso em meu coração).

São Paulo, 26 de Setembro, depois da fossa-a-bossa-a-nossa-grande-dor.

sábado, 18 de setembro de 2010

Amors

O amor invadiu meu corpo, em busca de espaços. Ele todo era uma falta, um por vir imenso, e me invadia e deixava cheio de buracos para formar espaços. Ele invadiu também minha casa e mudava os móveis de lugar para se encaixar, para que coubesse, ele tirava as visitas do sofá e das poltronas para que sobrasse espaço. O amor quando veio me deixou vazio, aumentando o raio de cada poro, ele foi vazando por espaços, ele nunca preenchia nada. Fui me tornando oco, um ser sem nada, porque respeitava sua vontade – esse amor que se anunciava, ele me dizia que quando chegasse de vez seria com uma violência tamanha que se não tivesse um espaço só seu bem definido, iria arrebentar com meus órgãos internos, com meu pulmão, com meu estômago, e eu com medo fui deixando ele se fazer e ele se fazia assim, devagarinho, tomava cada trecho de mim numa cadência cada vez mais ousada. Assim, eu hoje olho minhas fotos e vejo quadrados brancos, vejo minha face apagada, me vejo sem mãos, sem olhos, me vejo vazio nas fotografias da parede e quando me perguntam o que é aquele vazio, eu não hesito em dizer: é o amor. Que me toma por seu abrigo, que me acreditou ser uma caixa de proteção, uma segurança, que me apaga prometendo sensações – essa borracha invertida, esse pedaço de vida que virou esse eterno pedido. Já não consigo me dissociar mais de meus vazios: hoje sou um homem semi completo por ter cedido espaço, me apertado numa luta de mim contra mim dentro de mim para que esse amor em mim coubesse: eu espero. Hesito, mas espero. Com ele viriam músicas, viriam sons, gemidos, viriam com ele algumas dores e até um pouco de morte: ainda sim, espero: vazio. Semicheio. O amor corrói como uma palavra atravessada e já não tenho mais garganta para agüentar travos de palavras ou encontrar novas interpretações: sou isso, pela metade, e vou sendo esperando essa peça do avesso e do contrário para tirar de mim esse amor todo e transformá-lo em: pessoa.

sábado, 11 de setembro de 2010

Estomazil.

Me diga já o que foi que aconteceu, eu cantarolava enquanto ajeitava o edredom e a manta - desconfortável estava meu estômago, auqela conhecida queimação que sobe pelo esôfago e desemboca em um calor incômodo no começo da língua. A essa altura eu já estava arrotando azeite e sofria como consequência. Loucuras gastronômicas pela madrugada afora, iluminadas pelo 3:30 do visor do microondas, ai que eu continuo com essa vergonha de comer na frente alheia e seguro minha fome até que ela me vire um bicho em plena madrugada. Debruçado na pia, meio suado, lavando o rosto em água gelada. Cabeça embaixo da torneira. Viro a boca para cima, sorvendo a água gelada ou o suor mesmo, já não sei. Maçã com molho inglês, café com pimentão, penso três vezes: não sou normal, não sou normal, não sou normal, e depois me olho no espelho e repito outras três vezes em voz alta. Tudo ácido, tudo verde limão como num tornado violento que corrói o que há de mais delicado dentro de mim. Havia tirado a mistura do fogo, bebido rapidamente, ai eu quero me matar eu penso, de remorso, vou tomar manga com leite, posso, quem sabe, dormir pelo menos. Ainda nessa madrugada, mais três vezes ao banheiro, três vezes a cabeça embaixo da torneira e a boca virada, foco de incêndio frente à mangueira de bombeiros: hidrante escusado de sua tarefa original. Arrastando correntes pelo corredor, subindo um lance de escada, alisando paredes, sorte não morar em apartamento, assim tenho bastante espaço para percorrer e na terceira vez que ergo a cabeça, depois do jato d'água fria, eu me olho no espelho e não me reconheço mais. Pequeno monstro.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Val paraíso

Quando o abro, todos os dias, e vejo aquela pergunta fatídica, anseio responder: não sou, estou. No Chile, em 2026, relendo pela quinquagésima vez O livro dos abraços e sem ter hora nem vontade de voltar para casa.

Se Deus quiser, um dia quero ser índio. Viver pelado, pintado de verde.
Num eterno domingo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Divina Comédia

Para a Bê.
Beatriz esperou por dias e dias, até mesmo quando já estava em uma estação de trem, e Dante que não vinha. Sentada, inicialmente, com as malas aos seus pés, e depois sentada sobre as malas, via o calor que se estendia sobre à tarde e apagava o suor da testa com o dorso da mão – prendeu os cabelos num rabo de cavalo, se abanava. Aquela estrada de terra que se estendia à sua frente, aquele interior de interior que ela olhava, apenas uns canaviais à sua frente, mato mato mato, igrejinhas ao fundo, construções de outro século, Beatriz esperara por Dante mais de uma vida. E Dante não chegava. Perdera-se em algum ponto do caminho (uma pedra?) entre o último círculo do inferno e o sétimo céu. Por um momento, Beatriz pensara que sem Dante não seria feliz porque sem Dante sua história não se completaria. E aí eis que ela arrumou suas malas e, cansada de se esperar, foi para a estação de trem: vazia.
Uma vida inteira cercada de anjos. Que a atendiam e lhe davam sorrisos fáceis, gracejos, roupas brancas – o céu era um grande jardim com crianças brincando, encravado no meio do sertão, poucos luxos na verdade, água, pão, frutas doces e mesmo Beatriz morava em uma casa de pau a pique. Quando sentia tristeza ou solidão se lembrava que era sobretudo um ser humano porque os seres dali não sentiam essas coisas – esses sentimentos ainda verdes, nada maduros, como a melancolia.
Um dia Beatriz despertou de um estado anterior de inconsciência – um sinal. Nascera para esperar por Dante. E descobriu que não era isso que queria mais. As roupas brancas, os varais vazios, esvaziou também algumas penteadeiras, uns álbuns de fotografia com fotos em preto e branco (seu pai, sua mãe, seus antepassados) e trancou cada uma daquelas coisas em três maletas de couro. Atravessou a sala, a varanda, e desceu por algumas ruas até que chegasse ao centro daquele lugar, onde as ruas já eram de pedras, e ponderou por alguns instantes sobre o que fazia, parada em frente à igreja da matriz. Se esquecera, então Beatriz se lembrara, do seu caderno. Voltou para a casa onde passara os últimos anos, sozinha, à espera de Dante, e encontrou, enrolado em uns panos velhos, na segunda gaveta da cômoda, o caderno onde transcrevera todas as sensações que fora aprendendo com o tempo. De começo, pensava, era um ser nulo, uma criação de argila posta naquele céu por alguma força superior afim de esperar. E era oca de sentidos, não sentia, mas não como os anjos que a cercavam. Beatriz não sentia porque não aprendera a sentir. E foi, aos poucos, seu jeito humano nascendo, o aprendizado de uma sensação: a dor, o amargo, um riso, uma geléia de amora tocando a ponta da língua. Os cheiros que a cercavam naquela cidade: o canavial que se estendia por todo o redor do céu, em circulo, a dama da noite, os lampiões e as fogueiras e o cheiro de queimado e fuligem que invadia seu nariz toda noite. No caderno, Beatriz escrevia tudo. E conhecia também, porque o conhecimento não era dado de graça, tampouco era uma concepção essencialmente humana – a literatura se fez descobrir por ela. Um anjo, ou mil. As palavras, esses doces mistérios, ainda não os deciframos como queremos. Que valor tem a literatura? É sempre um grito, o que varia é seu sentido: para fora ou para dentro, leve ou pesado, e ultimamente Beatriz gritava para dentro porque com o lado de fora estava leve, vazia, descarregada, totalmente cândida.
Aos poucos, Beatriz foi descobrindo, pelas ladeiras e se guiando pelos caminhos que aquelas casas contavam, à estação de trem, e agora ela podia sair dali sozinha. Não mais esperar por aquilo que seria: um resgate? Uma fuga? Uma evasão. Sobre sua cabeça um céu tão azul que doía nos olhos, e um verde que se estendia pelos canaviais à sua frente: decidia, cruzaria o sétimo círculo do céu.
E encontrara a estação de trem vazia, desativada quase, e se não fosse essa suave esperança que se desfazia na boca de Beatriz em sair daquele lugar, ela talvez voltasse a sua espera eterna. Sentada, descalçou os sapatos e esperava agora, um trem. A nuca quente, os ombros ardidos, sobretudo naquela estação havia uma sombra e isso já lhe confortava: um sinal. Aquela tarde era igual à todas as outras que Beatriz passara no céu: quente, com uma brisa acolhedora – as casas, ao longe, telhados e parapeitos, contornos coloridos, centenas de anjos correndo e brincando.
Ir embora é sempre uma escolha, pensou Beatriz, o queixo apoiado, olhos cerrados. Mas ir embora depende do referencial: porque ir embora para quem chega é simplesmente chegar: sair do sétimo céu e atravessar todos os infernos adiante seria uma fuga se visto do céu – mas seria uma chegada se visto da terra. E era escusado, aquela altura, saber se céu ou terra eram meros referenciais. Primeiro porque, sendo ali sua morada, um céu de toda vida, com canaviais, anjos, igrejinhas, casas de pau a pique, roupas brancas no varal, aquilo era sobretudo um passado. E segundo porque à sua frente, trilhos de ferro e trem, insegurança, lhe esperava um destino, com ou sem um Dante, sozinha, na imensidão desassossegada que lhe diziam ser o inferno. E este era agora seu futuro.
As palavrinhas que corriam soltas caderno afora, linhas preenchidas, e Beatriz já não sabia o que fazer com elas. Toda palavra tem uma história por trás de si – toda mão que a escreve é uma trajetória. itinerante, uma nostálgica maquina que insiste em registrar o inregistrável
Beatriz se cansava daquele sol e daquele céu azul que agora era pesado já sobre sua cabeça – por uma ou duas vezes piscou e os olhos carregados se fecharam mais do que se abriram: uma mala caiu. Mas ao fundo, e com o som do silvo agudo ela despertou rapidamente, vinha no final daqueles trilhos que se estendiam por todo o cruzamento dos sete infernos, um trem. Que acabava de parar em sua frente, naquela estação, e então quando Beatriz embarca ela deixa no banco da estação o caderno porque não faria mais sentido, nem seria mais possível, registrar um futuro desconhecido.