quarta-feira, 21 de julho de 2010

A sabedoria

Naquele dia em que descobririam que Regina iria freqüentar o curso de sociologia, os pais ficariam indignados. O pai iria abrir bem as narinas e iria expirar o ar que tinha dentro do corpo com raiva, e a mãe iria, numa cadência ensaiada em anos de desaprovação, erguer a cabeça e depois abaixá-la, balançando, e continuaria a olhar para baixo. Regina chegaria com sua pasta e sua bolsa, abriria a porta da sala com cuidado, e então entraria. Sentaria no sofá com medo da represália e diria a palavra sociologia num quase murmúrio, com a boca meio fechada, sem chiar a língua nem mostrar os dentes, essas performances necessárias para dizer a palavra sociologia de forma clara.
Depois o pai começaria o discurso. Diria que na faculdade de sociologia se reuniam subversivos. Regina argumentaria e, quando ensaiasse se levantar, o pai se viraria e apontaria o dedo em sua cara. Regina então iria se acomodar na poltrona e o pai andaria de um lado para o outro da sala. A mãe, muito emotiva, começaria a chorar e se perguntar o porquê de não ter uma filha como as outras. O passado iria começar a se desenrolar como um tapete áspero aos pés descalços – eram uma família muito limpa e andavam de pés descalços dentro de casa para não trazer as sujeiras da rua – e a mãe iria mais uma vez se lamentar do casamento perdido por Regina. O pai diria que aquele era um rapaz tão bom, tão honesto, com um emprego garantido. Que Regina deveria ter sido expulsa de casa quando negou o casamento. Que Regina não sabia nada da vida porquê era jovem demais. Que Regina lia demais e se deixava influenciar por idéias de mulheres perdidas e de pessoas que nada tem de compromisso com a vida real. Que Regina não iria freqüentar o curso de sociologia porque deveria continuar como era: professora, de crianças. Que se não fosse daquela forma era melhor que Regina fosse morar com a avó, em Barbacena. E Regina mais uma vez, com a alma indignada, iria ficar vermelha, e iria se arrastar até seu quarto, e se debruçar em sua cama, e montar um plano em sua cabeça para sair daquela casa. Os pais, na sala, iriam ligar a televisão e se lamentar pela filha. A mãe iria fungar em um lenço bordado. O pai iria enlaçar a mãe, por a sua mão no ombro da mãe e apertar, porque era assim que demonstrava preocupação e carinho. A mãe, cujo tempo de vivência com o pai já lhe trouxera um certo aprendizado, iria ficar agradecida pelo carinho e desejaria que Regina encontrasse um homem como o pai.
Mas Regina havia se cansado daquela cena que se repetia à cada decisão sua. Desde que recusara o pedido de casamento, começaram a lhe tratar como um perigo eminente aos bons costumes daquela casa. Começaram a lhe olhar torto pelo bairro, pelas ruas. Desde que viram Regina com outros homens que não seu quase noivo, começaram a desconfiar de Regina pelas ruas do bairro. Os vizinhos comentavam com a mãe, que chorava, porque era muito emotiva. E era escusado deixar aquela casa porque dependia daquelas pessoas e porque gostava delas. Queria, no mais íntimo de sua existência, que as pessoas lhe entendessem.
E na última reunião do comitê onde estavam discutindo as novas diretrizes, os novos passos que seriam dados pelos juventude engajada, Regina havia acabado de negar o pedido de casamento, e se encontrava desolada. No meio dos panfletos e da desolação, encontrou Cláudia, que era uma moça loira e bonita, também do comitê, e da faculdade de sociologia. E Regina e Cláudia se deram bem desde o primeiro instante e quando Regina lhe disse que só tinha um magistério mas morria de vontade de entrar para a faculdade de sociologia, Claúdia lhe deu o maior apoio que alguém poderia lhe dar. Excitada, Regina seguiu os passos de Cláudia e entrou na faculdade sem que ninguém soubesse.
Mas ficava claro que sabedoria não estava em se expor. A sabedoria era algo como uma traça, que ia comendo os arredores de um papel imundo, de um relatório de denúncia. O ataque frontal, o verbo atravessado, nada disso era eficaz. A frase que agredia, por mais correta que estivesse, era como lançar o corpo frente à uma bala disparada, só esperando pelo alvejamento e por um sangrar incontínuo. Fosse uma vitória, um motivo de orgulho, Regina descobria que era ineficaz. Não queria ser um corpo alvejado e corajoso. Queria ser um porta-voz ativo de cadência conhecida.
E Regina soube desde então que a sabedoria consistia em ficar quieta. E passou a evitar expor sua opinião como quem tem um doce escondido no bolso – decidiu que era melhor saborear sua opinião quando sozinha, em um quarto fechado, tirando-a do bolso e desembrulhando lentamente o celofane que a envolvia do que ofertá-la à quem não apreciava seu sabor. Mesmo para dividi-la: iria somente dividir com quem tivesse tanto gosto por aquilo quanto ela. Já não dava mais risadas, mas sorria complacente. Lembrava das palavras de Cláudia que costumavam dizer “faça voz de burra” ou “voz de burra é uma coisa que funciona!”. E com os olhos arregalados, as sobrancelhas erguidas, mordia o lábio inferior numa discrição que parecia sem querer mas que fora detalhadamente planejada e o pai consentia. A mãe lhe servia o café na xícara e prevenia para que tomasse logo. O café vai esfriar, Regina! Dizia e ela assentia com a cabeça. E sobretudo, resolveu, deveria pedir desculpas. Diria à mesa que ela era uma filha ingrata. Diria que não dava valor aos esforços da família. Diria que os deveres dos filhos são honrar os pais. E os pais aprovariam e Regina novamente sorriria, complacente. Porque depois de conhecer Cláudia, Regina se tornaria uma mulher sábia. E a sabedoria, Regina iria descobrir, consiste em ficar quieto.
Eram uma família feliz, finalmente. Depois de tantos tumultos, de uma filha que bambeava no meio fio entre uma vida correta e a subversão, podiam se sentar na mesa da sala de jantar e almoçarem em paz, aos domingos. Agora Regina trazia a amiga do grupo de jovens para a casa, uma moça boa chamada Cláudia, que também era professora de crianças e ensinava catequese na sexta-feira de manhã. Se trancavam no quarto após o almoço com metros e mais metros de tecido branco – saíam no final da tarde. Um dia a mãe perguntou para que era aquilo e Regina lhe disse a verdade: estavam bordando um enxoval. Regina decidira se casar, finalmente. A mãe encheu-se de felicidade, não podia acreditar, os olhos marejados, a panela no fogo, foi deixando tudo de lado e abraçou a filha e também a amiga da filha, que finalmente botara algum juízo naquela cabeça.
Traziam uns livros. Livros grandes, meio pesados, autores estrangeiros, alemães, a mãe não conhecia direito mas ficou feliz em saber que Marx era um profundo analista da importância da família. Regina então lhe contou que de acordo com ele o casamento era um bem sagrado e precioso. O pai apenas assentia, com orgulho da nova fase, e pensava consigo que era grande responsável por essa evolução porque sempre deu o exemplo.
O tempo passava e o comitê resolveu cair na ilegalidade. As faixas que Cláudia e Regina passaram tardes inteiras pintando com mensagens que iam contra a opressão já não podiam mais ser utilizadas em passeatas. Foram queimando documentos, identidades, e não sabiam o que fazer com Ricardo, um dos líderes da diretoria, membro importante e já procurado pela polícia política. Foi Cláudia quem sugeriu mas Regina quem realmente elaborou o plano e encarou a situação como se deveria ser encarada: com sabedoria.
E o pai não pode conter dessa vez seu orgulho ao receber em sua casa o noivo da filha, que falava alguns idiomas e trazia em sua mala diversos livros. De longe se percebia que era um homem culto, um homem letrado. E Ricardo inspirava tanta confiança naquela família que os pais, por mais que achassem equivocado que o noivo fosse se hospedar por ali, até aceitaram que Ricardo ficasse na casa deles por aquele tempo em nome do conforto do rapaz: Regina lhes confidenciou que Ricardo estudava no Rio de Janeiro e estava de férias da faculdade, mas que não se dava muito bem com a família. Tinham muito dinheiro, mas Ricardo insistia em fazer a própria vida. O pai achou digno e honesto. A mãe ainda teve medo de que comentassem, mas se acalmou assim que Cláudia afirmou o contrário. No fundo a mãe concordava com ela, com a alma sorrindo, que quem comentasse tinha era inveja do noivo rico de sua filha.
E se Regina não tivesse virado uma mulher sábia, a polícia aquele dia iria invadir sua casa em busca de provas de envolvimento seu com o comitê. E a mãe iria olhar ressabiada, e o pai diria que sempre soube que Regina lhes traria um grande problema. E os dois iriam olhar decepcionados a uma invasão no quarto de Regina e a exibição de panfletos de mimeográfo espalhados em sua cama. Se Regina não tivesse entendido o que era sabedoria, a mãe não teria dito ao policial que a filha estava para se casar e que arrumava, no quarto, o enxoval, com a ajuda da amiga. A mãe também não comentaria, para completar o quadro, que a filha estava lendo todo tipo de livro sobre casamento e que contava com a ajuda de uma amiga para arrumar os preparativos. E a mãe não teria oferecido um cafezinho aos homens brutamontes que haviam entrado em sua casa. E a mãe também não concluiria, por dedução, que aqueles eram seguranças que a família rica de seu futuro genro havia enviado para verificar onde ele estava morando. E não teria também tanta cautela na hora de escolher os melhores biscoitinhos de maisena do pote para servir junto com o cafezinho. E os homens não teriam ido embora, acreditando que aquela era uma casa de respeito e que pela primeira vez haviam se equivocado. E foi graças a essa sabedoria que Regina não foi presa, torturada e morta.