quarta-feira, 31 de março de 2010

Jornalismo Literário ou New Journalism.


Ao mestre Capote, com sangue frio.

Após o julgamento do casal Nardoni, responsável pela morte da menina Isabella, ambos foram considerados culpados e encaminhados para a penitenciária onde cumpriram, resignados, a sua pena. Alexandre trabalhava no almoxarifado, sempre quieto, e Ana Paula Jatobá lia a Bíblia diariamente. Não se sabia se tratava de uma tentativa de se redimir perante Deus ou a sociedade por tirar a vida de uma criança indefesa, visto que o casal jurava inocência, ou se agir daquela maneira fazia parte da construção de um perfil exemplar que contribuísse no pedido de recurso. A história dos Nardoni foi esquecida, aos poucos, sendo lembrada somente no dia em que Isabella faria aniversário, mas cada vez com menos alvoroço, menos furor, até surgir no rosto dos ancoras que davam a notícia, nos anos posteriores, um sorriso. Passaram a dizer assim: e hoje, a menina Isabella completaria dez anos. Quinze anos. Sorrindo.

Após onze anos de prisão, o casal Nardoni já poderia cumprir a pena em regime semi-aberto, quando ocorreu na penitenciária do Tremembé uma rebelião. Os presos se organizaram, fizeram motins, queimaram colchões, cortaram a garganta de guardas e chegaram a uma resolução curiosa: iriam assassinar Alexandre Nardoni.

Às 18:00 daquele dia, dois presos, Josimar Melo da Silva, mais conhecido como ‘o Carrasco’ e o outro um travesti que se identificava por Aninha Jatobá (sugestivo, não?) arrastaram Alexandre pelos corredores do presídio e, com as mãos ao redor de seu pescoço, tentaram sufocá-lo. Quando os olhos de Alexandre ficaram injetados de sangue e seu rosto começava a se desfigurar daquele modo que somente as pessoas que morrem sem ar ficam, Aninha Jatobá soltou seu pescoço. O Carrasco carregou Alexandre alguns lances de escada no colo, levando-o para o topo do pavilhão 1 do presídio. Chegando em uma sala cuja grade havia sido arrebentada, Alexandre foi arremessado para o chão diversas vezes. Uma, duas, três. A cada vez que batia no chão, seu corpo tremia e mal ele podia reaver a consciência, já era novamente arremessado. Após os ferimentos começarem a surgir em seu corpo, o Carrasco empurrou seu corpo inerte pelas frestas da grade arrebentada, segurando-lhe pelas duas mãos: o corpo de Alexandre ficou exposto, de modo que Aninha Jatobá pudesse vê-lo do pátio da penitenciária. Ela calculou o ângulo e fez um sinal afirmativo. O carrasco então soltou o primeiro braço. Alexandre ficava preso por uma mão só, o corpo distendido, o peso de toda a sua culpa sendo segurado apenas por uma mão. Primeiro a mão direita liberada, depois a mão esquerda, e Alexandre caiu no vazio não sem antes balbuciar a palavra ‘perdão’.

Obs: quando a rebelião foi contida e o Carrasco e o travesti Aninha Jatobá foram questionados se eram ou não autores do crime, eles negaram veementemente, dizendo que havia alguém no edifício que fora responsável por jogar Alexandre daquela altura. Sem conseguir conter o riso, entretanto, um repórter questionou se fora um possível ladrão. Aninha Jatobá não perdeu a classe, nunca perdia, e replicou que ladrões numa penitenciária são o que não falta.


Nostalgia

1) Encontro, hoje, um conhecido no metro. Nos cumprimentamos, conversamos sobre a faculdade, como vai seu curso, como vai o meu. Rumo ao Tucuruvi, descemos a escada, vou para Santana e ele para a rodoviária. De repente, no meio do caminho, não uma pedra, mas uma saudade: tenho saudades dessa estação, quando estudava por aqui era aqui que descia, diariamente. Não estudei com você, mas te entendo. Também sinto saudades. Alguém no vagão me conhece? Morar nessa cidade de algum milhão de habitantes não contribui para identificação mútua, reconhecimento de sentimentos, talvez ninguém ali que rumava à Zona Norte tivesse ligação com minha escola no Ipiranga.


2) Hoje encontro Éric no metro e ele me faz lembrar de uma saudades que nada tem a ver com ele. Um encontro bastante casual, e conversamos sobre coisas amenas – passando em frente a estação Armênia, ele afirma sentir saudade da sua escola que se localiza próxima a estação. Não estudamos juntos durante o Ensino Médio, mas conheço sua sensação e naquele momento exato, quando ele desce do metro na estação seguinte, me angustia estar sozinho sentindo essa saudade também daqueles três anos que já começam a se apagar em minha memória e cogito ligar para Mirrah para falar sobre isso, mas as implicações práticas impossibilitam efetivar esse desabafo (não tinha créditos no celular)


3) Chegando no lugar onde deveria descer, levanto-me do banco e reparo que eu conheço aquele rapaz de óculos que estava frente a porta: Eric, conhecido meu, amigo de uns amigos. Qual é a chance de encontrar uma pessoa no metrô? Alguém que não tem a sua rotina, não faz os mesmos caminhos de você, em uma semana que gira em torno de um feriado e quase não funciona – Eric e eu, coincidentemente, estamos indo para a Zona Norte, e no meio do caminho entre o meu destino e o dele existe a Escola Técnica Federal, onde ele estudou, e que deixou saudades. Ele comenta, eu me lembro. Também tenho saudades da Escola Técnica Estadual Getúlio Vargas. Tenho saudades daquelas pessoas todas, daquelas cenas todas. Ele sai do vagão, se despede, e o Caetano começa a cantar em meu ouvido It’s a long way, it’s a long way. Precisava falar com alguém sobre aquilo, só a Mirrah me entenderia naquele momento, mas ela não estava lá, estava longe, em outro ponto da cidade. Nem eu sabia direito o que estava fazendo por ali, uma reportagem em um lugar que eu sabia que não me daria a informação necessária.


4) Estamos no vagão, conversando, e olho a janela que se estende a frente, o céu cinzento que anuncia uma chuva torrencial, uma enchente, um alagamento, um dilúvio em São Paulo que irá apagar as memórias físicas, nossos lugares todos, as passagens por onde passamos serão inundadas, lentamente, (os escafandristas irão explorar sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma, seus planos), e frente a janela quando o trem explora a superfície, Eric encontra um caminho próximo e se lembra que estudava por ali, e sente saudade, e me faz lembrar que saudade é acima de tudo falta, e eu sinto falta daqueles dias, as manhãs assim tão de graça, o pátio de cimento queimado onde eu deitava, sentada, dormia sem qualquer preocupação, a sala do grêmio com os pufs verde e vermelho, as reuniões, e lembro da Mirrah e quero conversar com ela naquele momento para saber se ela também sente falta daqueles dias onde a gente se empenhava tanto em acreditar que as coisas poderiam ser diferentes.

terça-feira, 23 de março de 2010

As professoras de Francês.

Desde que eu comecei a estudar Francês tenho passado por diversos cursos, tornando minha formação na língua bastante fragmentada. Por motivos vários que vão desde preço da mensalidade até a disponibilidade de horário e de tempo, eu passei até agora por alguns cursos de Francês em diferentes escolas, o que me permitiu uma visão mais ampla dos métodos de estudo bem como uma repetição enorme de coisas já vista, assim: cada começo de curso, eu reaprendo o passé composé (je suis allé, tu as mangé, elle est arrivé, voilà...). Entretanto, se posso destacar algo que faz dessas minhas inserções por essas diferentes escolas uma experiência divertida é que cada vez que entro eu me apaixono pela professora nova. Incrível. Professoras de Francês guardam consigo uma elegância natural de mulher balzaquiana, um certo ar sofisticado, divertido, como se viessem diretamente do Champs Elysèe. Como se conseguissem, ao mesmo tempo em que ensinam a língua, transmitir a utopia de que Paris é uma festa (como diria Hemingway).
Comecei minhas primeiras experiências com a lingua em um Centro de Estudos destinado a estudantes de escola pública. O curso, à princípio, seria bastante ineficaz porque era dado em uma sala com mais trinta pessoas. Sendo de graça, entretanto, não vi motivo para não frequentar. E qual não foi minha surpresa quando Mme. Silvana adentrou a sala: entre 35 e 40 anos, pele bronzeada mas com um bronze mediterrâneo, seios bastante fartos, o rosto com algumas sardas que davam à ela um ar juvenil e o cabelo longo, escuro e repicado. Dizia que repitissemos com ela o 'r' do Francês, um 'r' gutural, vindo da garganta, como ela mesmo dizia il comme du coul, mes elèves, tout le monde, e todos repetiam, inclusive eu, animado, sentado na primeira da frente.
Mais tarde Mme Silvana teve problemas de saude e se afastou do curso, dando lugar a Marcela. Fiquei inconsolável porque a essa altura eu já nutria por Mme Silvana o que eu não havia sentido nem mesmo pela professora do primário. Eis que tivemos a primeira aula com Marcela e foi uma grata surpresa: recém formada, ainda guardava consigo o jeito despojado da FFLCH e de uma recente viagem de mochilão pela França que fizera como presente por ter concluído o curso de Letras. Uma massa de cachos loiros, olhos azuis, pele bem branquinha, all star e um jeitinho aéreo, uma fala arrastada, um Francês que ela pronunciava sem sobrecarregar o 'r' e o 'l'. Ninguém lhe dava muita atenção porque ela falava baixo. As pessoas foram desistindo do curso, e eu continuava firme. As aulas passaram a ser praticamente entre mim e ela, enquanto o resto (o resto literalmente, porque a essa altura restavam quatro ou cinco pessoas) conversava. Até o dia em que, sentado na porta da sala, esperando a aula começar, ouço a vozinha fraca dela dizendo: Tu es seule aujour'dui, Leonardo. Ça va être toi et moi, seulement...
Não lembro ao certo porque sai de lá: imprevistos com o horário, creio eu. De fato, quando retornei ao curso, já em uma escola privada e com um material decente, conheci Carol. Mais do que professora, ela era praticamente uma das alunas do curso tamanho seu despojamento e capacidade de descontração - todos, inclusive eu, adoravam sua aula. Cabelos curtinhos, óculos de aro grosso, um ar intelectual complementado pelas camisas brancas que ela usava. Conversávamos muito, nos intervalos das aulas - ela me emprestou Madame Bovary em Francês, porque segundo ela Flaubert no original era um deslumbre. Um dia, dissertando sobre sua tese de mestrado, ela comentou que se tratava de desvendar os traços da loucura em Maupassant. "É no sul da França, Maupassant?" "Não, Leo, Maupassant é um escritor". É, seu nivel realmente era muito acima do meu.
Recentemente tive que mudar de escola e, assim que fiz a matrícula, me amedrontaram com as descrições da professora. Dalva, seu nome. Imaginei uma velha de chale, um tipo meio Edith Piaff, arrogante. Sábado passado entrei na sala atrasado. Novamente eram poucos alunos e a moça morena e bonita, com os cabelos presos num coque displicente desses que se fazem meio por acaso, vestida de saia, pernas à mostra, atendeu a porta assim que bati. No começo pensei que era uma aluna, mas não.
- Tu es Leonardo, n'est pas? Salut, alors, je suis Dalva, ta nouvelle professeur!

sexta-feira, 19 de março de 2010

Ritos de passagem.

Buscar em novos ares, novos cortes de cabelo, nova imagem, mas não se perder em um eu novo e não confundi-lo com um eu novato que já sou por excelência, sem perspectiva de escolha ou decisão. Não perder-me num eu antigo, antiquado por definição, que não é de memórias que se vive tampouco de saudade. Mas fazer, acima de tudo, desse eu novo um campo de boas perspectivas, e trazer de uma infância muito querida sensações que deixem gosto na pele, nos olhos, um cheiro anônimo que vem da panela, vozes da cozinha, conversa de família, viagem de família, coisas doces, a sensação de uma liberdade que se limitava entre o braço esquerdo do pai e o braço direito da mãe. Poderia dizer, hoje, à eles, que essas coisas fazem falta? O que se imprime em corpo e por consequencia se faz uma máscara que a gente veste aos poucos e, também aos poucos, se torna um eu verdade, é o que me separa dessa época saudável, e isso que me separa eu enxergo como uma linha cruel, um fio metálico aceso e quente, porque nessa impossibilidade de me sentir novamente dentro da zona de conforto que um dia foi: minha casa, eu posso extrapolar os limites do que me é imposto por ser isso (um homem) e no grito mais rouco que for esbravejar toda minha ira por não ter notado como as coisas, aos poucos, degringolavam de déu em déu. Nada volta. Atingir uma certa idade é como ultrapassar barreiras finas, feitas de papel vegetal, com socos, rasgos, nada simples, nada folgado: às vezes esses partos pelos quais passamos em ritos de transição são mais dolorosos do que o parto original. Afinal de contas, no parto original o choro é perdoado e, após o choro, sempre se ganha colo.(Tenho inveja dessas tribos indígenas e questiono porque são chamados de selvagens outras tribos asiáticas, tribos maori, grupos que vivem no interior da África, povos nômades do oriente Médio. Nesses lugares, as crianças passam por festas de transição, estabalecem um ponto, e a partir dali são adultas. Não sofrem um sofrimento prolongado e contínuo que aos poucos se esmaece com o tempo; levam a batelada na cabeça de uma só vez, e, após a recuperação do baque, se erguem e são adultas. Prontas para fazerem o mesmo com o que vier. Assim seria mais fácil, eu creio)

sábado, 13 de março de 2010

A paixão segundo G.H.

"Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação a ser? E no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse o que eu pensava - como se antes eu tivesse sabido o que era!"

Clarice Lispector.

Trânsito

Esses dias, estava indo para a faculdade, sozinho. Daqui até lá são praticamente duas horas e meia com possíveis variações (para mais) de tempo se eu pegar trânsito ou algum acidente no caminho, e por isso eu geralmente saio por volta de 4:30 de casa. Nesse dia em questão, estava um puta calor, um calor tremendo, dessa leva que voltou a assolar os dias em São Paulo (depois daquela leve pausa onde eu cheguei inclusive a tirar meu moleton de dentro do armário, o tempo nos reservava essa surpresa - um mês de março suado). Enfim, peguei um ônibus até o Terminal Parque Dom Pedro, como de costume, e essa linha era uma que eu não costumo pegar justamente porque ela vai pela Radial Leste, via extremamente passível de trânsito (e como eu já vou pegar um trânsito filho da puta na Rebouças, não posso me arriscar a pegar 'dois trânsitos' num só dia).
Na metade do caminho, antes de atravessar o viaduto rumo ao centro, o calor começou a ficar insuportável. Insuportável de verdade, e nesse momento eu dei graças a Deus de estar praticamente sozinho no ônibus - estava sentado no último banco, e à minha frente eu via somente um homem dormindo, camisa meio aberta, cabelo grisalho, corrente de ouro no pescoço. Um tipo meio pedreiro. Perto da cobradora (era uma cobradora mesmo), havia uma mulher negra com os cabelos presos num coque elegante, sentada com uma postura de bailarina assim, tinha qualquer coisa de rainha africana. Fiquei um tempo olhando pra ela. No banco para idosos, um rapaz da minha idade mais ou menos ouvia música com fones e eu o invejei profundamente de não ter como fazer o mesmo. Revirei na minha mochila, achei uma garrafa com um pouco de água do dia anterior. A água quente fez um efeito pior, causou mais sede, enfim, um horror.
Aquele calor todo foi me dando um sono tremendo, as pálpebras vão ficando pesadas; eu olhava pela janela e ao longe as ruas pareciam ir derretendo, aquele efeito estranho, o asfalto parecendo uma frigideira no fogo. E pior de tudo era a perspectiva de mais, pelo menos, uma hora e meia de caminho nas mesmas situações. Meus olhos foram fechando lentamente, não resisti ao sono e dormi.
Acho que foram uns quinze minutos talvez, pouco mais que isso, na próxima lombada eu acordei. Acordar assustado é a pior coisa do mundo, saímos de um transe (que é o sono) muito subitamente, isso causa, na minha visão, um desconforto que mistura realidade e o sonho, é bem louco o negócio. O fato é que abri os olhos e os bancos do ônibus dessa vez eram vermelhos. Não lembrava dos bancos do onibus serem vermelhos, há anos que eu pego transporte público em São Paulo e pra mim eles sempre foram azuis ou cinzas. Dentro do ônibus entraram mais pessoas, uma moça loira que lia avidamente, bonita, muito bonita, a pele extremamente branca. A deusa africana continua sentada uns cinco bancos à frente, mas a cobradora não estava lá mais. Os outros também não estavam (o pedreiro e o cara dos fones de ouvido). Fiquei meio assustado, ainda mais quando olhei para fora e não reconheci a Radial Leste. O ônibus seguia por uma alameda cheia de árvores, uma sombra gostosa agora caia sobre ele e já não fazia mais tanto calor. Nas laterais da alameda, tinham umas casas simples, térreas, pintadas de amarelo claro, de azul claro, casas muito parecidas, algumas crianças brincando na porta, crianças bem branquinhas como a moça do ônibus. Devia estar em um caminho errado, pensei, e consequentemente muito mais atrasado do que antes. Mas eu estava gostando tanto daquele novo caminho, com sombra, ar mais fresco e as casas bonitas ao redor das alamedas que fiquei até mais calmo, meio que sem me importar em chegar ou não atrasado.
Ainda sim é bastante intrigante dormir num lugar e acordar dentro de outro. Ao cruzar uma esquina, o ônibus passou por um placa verde com uma inscrição - nesse lugar, as placas eram verdes - que eu mal conseguia ler. Mas lembro que era uma palavra inteligível: Arhpsankan.
Talvez o nome de um bairro, pensei, um bairro que não existe em São Paulo.
A deusa africana levantou de seu lugar, caminho quase levitando pelo corredor do ônibus e, sempre sorrindo, veio até mim e disse:
- Iptsi vraëm kriauis drath dja rarik naëm?
Fiz cara de interrogação. Ela simplesmente continuou sorrindo, sorriu mais ainda, os dentes muito brancos apareceram reluzindo. O ônibus parou, e ela desceu. Achei genial ter ido parar nesse lugar, assim, sem querer.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Borges me persegue

"Pensei com medo onde estou? e compreendi que não sabia. Pensei quem sou? e não pude me reconhecer. O medo cresceu em mim. Pensei: esta vigília desconsolada já é o inferno, esta vigília sem destino será minha eternidade. Então despertei de verdade, tremendo"

Jorge Luís Borges, A duração do Inferno.
Há uns dois anos eu fui em uma exposição sobre arte argentina durante a ditadura militar e havia, no catálogo da exposição, esse trecho de uma obra do Borges. Fiquei fascinado na hora, tão fascinado que rasguei o trecho do catálogo e desde então trago ele comigo na carteira. Borges é um escritor que me persegue há um tempo, e cada vez mais ele se faz presente quando o assunto é literatura.

Sou fã do realismo fantástico latino-americano, absolutamente fã de autores como Júlio Cortázar e Gabriel García Marquez. Mas Borges sempre foi um cara de quem eu muito ouvi falar e nunca havia ido atrás. De um tempo pra cá, entretanto, ele tem me perseguido como se fosse necessário que eu lesse sua obra.
Começou com um programa na TV Cultura onde ele era entrevistado e que eu, por acaso, assisti, sem a menor pretensão, visto que havia colocado no canal pouco antes de dormir. À seguir, em uma viagem à praia com alguns amigos, enquanto eles jogavam baralho eu resolvi dar uma folheada em algumas revistas velhas guardadas no apê onde estávamos e eis que encontro uma entrevista com Borges, o escritor cego cuja biblioteca particular era uma das mais belas já vista pelo repórter em questão. Chegando em São Paulo, após a viagem e após alguns dias, eu recebo um poema do escritor por e-mail, de um remetente que eu desconheço:


Bem no fundo do sonho estão os sonhos. A cada
Noite quero perder-me nas águas obscuras
Que lavam o dia, mas sob essas puras
Águas que nos concedem o penúltimo Nada
Pulsa na hora cinza o obsceno portento.
Pode ser um espelho com meu rosto distinto,
Pode ser a crescente prisão de um labirinto
Ou um jardim. O pesadelo sempre atento.
Seu horror não é deste mundo.
Causa inominada
Alcança-me desde ontens de mito e de neblina;
A imagem detestada perdura na retina
A infama a vigília como a sombra infamada.
Por que brota de mim, quando o corpo repousa
E a alma fica só, esta insensata rosa?



Esses dias, na faculdade, a professora de Filosofia comentou que teríamos de ler, durante o semestre, um conto do Borges e mais uma vez o escritor apareceu na minha vida. Mas nada supera o último fato, este que mais parece um de seus contos. Na última terça-feira, eu estava super atrasado e acabei pegando o ônibus errado. Fui para o lado oposto da avenida onde eu deveria descer e o ônibus ainda por cima entrou em umas ruas que eu desconhecia. Resolvi descer ali mesmo, antes que ele se estendesse mais por caminhos que eu não conheceria e de onde seria bem mais difícil voltar. Enfim, ao descer do ônibus, dei de cara com um sebo.
Inevitavelmente, tive que entrar no sebo e, logo na primeira prateleira, um livro do Borges (chamado "Ficções") se encontrava à venda, à minha espera, por módicos R$ 10,00. Era a quantia exata que eu tinha na carteira, e, respeitando os percalços do destino, trouxe Borges comigo.

A dialética do abraço.

Recentemente, encontrei uns amigos muito queridos de quem eu estava sentindo muita falta. É estranho encontrar as pessoas assim, que eram parte constante do seu dia a dia, que muitas vezes passavam o dia inteiro com você, e hoje já não partilham dessa rotina, porque efetivamente a gente sente uma falta brutal. Eu demorei pra escrever isso aqui porque de um modo ou de outro precisava saber qual seria a maneira correta de transmitir minha impressão (e ainda não creio ter achado - novamente a aula daquele senhor, o Ciro Marcondes, me fez entender que nós nunca conseguiremos transmitir exatamente o que sentimos). Entretanto, posso relevar uma coisa bastante interessante em nossa última reunião: o abraço como forma de expressão.
É engraçado porque ao abraçarmos uma pessoa, tentamos de certo modo envolvê-la em um grau de intimidade muito amplo, afinal não existe mais nada entre essas duas pessoas que se abraçam naquele momento. E eu percebia isso porque, com a minha mania de sempre dar abraços apertados nos outros, eu tentava, acima de tudo, dizer como eles eram importantes. Como se a intensidade do abraço fosse a responsável pela intensidade da saudade: a que eu sentia até então, e a que eu passaria a sentir à partir de então. E de qualquer forma, os abraços são coisas pontuais, não duram muito tempo. Mas confortam, de certo modo, alguma coisa eles querem dizer. De fato, envolver uma pessoa em dois braços é muito mais do que dizer algumas palavras, do que explanar sentimentos, sensações. É simples, mas extremamente profundo.

domingo, 7 de março de 2010

Comunicação, Informação e Mensagens.

Refletindo sobre uma primeira semana de faculdade, talvez tenham sido poucas as aulas que de fato me fizeram pensar. É chato quando você acaba tendo que ceder e admitir que o professor que você menos gostou foi o que mais te causou impacto e infelizmente devo admitir que aquele sujeito grisalho e prepotente de nome Ciro Juvenal Marcondes Filho disse coisas muito interessantes na aula de Teoria da Comunicação.
Ainda que ao final da aula, depois de muita explanação desnecessária e apresentação de uma bibliografia de curso que se baseia em todos os livros por ele escritos, Ciro denominou para nós quais eram as diferenças entre informação e comunicação. Segundo ele, informação é tudo aquilo que nós vemos e nos desperta interesse, sem, entretanto, causar uma mudança efetiva em nosso ponto de vista. De certa forma é algum item aleatório à nossa volta que nós ajuda a confirmar uma ideia antiga, um conceito, e por isso nós nos interessamos por ele. Já a comunicação é ativa e vai de encontro ao que pensamos à respeito das coisas, sendo, portanto, muito mais incomoda. Ainda de acordo com o Ciro, a comunicação é impraticável com pessoas restritas, estagnadas, uma vez que essas nunca estão abertas a mudar seu ponto de vista.
Isso me fez repensar o porque de eu estar estudando Jornalismo e, mais longe ainda, porque a comunicação é necessária. Sem ela, estaríamos todos revivendo conceitos antigos e sem causar mudanças. Na verdade, pensando ainda mais longe, nada é ou pode ser construído em cima do que está acertado, correto. As inovações partem sempre do pressuposto da destruição. Inovar é, por si só, um processo de iconoclastia. Se há algum tempo eu me reprendia por mudar constantemente de opinião, hoje percebo que esse é um processo bastante natural das coisas e advém do nosso contato cada vez maior com o que está a nossa volta, com a cultura, a literatura, e ser uma pessoa aberta a tudo isso é um ponto fundamental para criar novos modelos, discutir, enfim...
Necessariamente, acho que ainda somos um mundo com bastante gente partidária somente da informação, desinteressada nas mudanças que a comunicação pode nos oferecer. De um modo ou de outro, minha vontade de trabalhar nessa área, que eu nunca entendi muito bem e sempre obedeci como a gente obece a um instinto, foi explicada por esse cara de quem eu não gostei nem um pouco. Talvez isso seja, efetivamente, uma prova de que a comunicação funciona.