sábado, 22 de maio de 2010

Morangos Mofados

It's getting hard to be someone, but it all works out
It doesn't matter much to me.

"No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se movia. Era dentro disso que precisava mover-se, sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo - e queria? Enumerava frases como: "é-assim-que-as-coisas-são" ou "que-se-há-de-fazer?", ou apenas "mas-afinal-que-importa?". E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofados, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta. " (Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu)

domingo, 16 de maio de 2010

Possessão

(ou a transformação por Twitter)

3:20. Começa a possessão pelas pontas das unhas, vai se espalhando pelo corpo todo, braços, pernas, se estende da ponta de cada pelo eriçado e penetra nos poros, vaza e escorre epiderme abaixo. Eram pequenas cápsulas desse algo negro que, quando inteiras, são inofensivas. Mas um banco onde estava quebrou e, ao cair, estouram as cápsulas e o seu conteúdo negro vazou e me invadiu por completo.

3:35. Os primeiros sinais dessa possessão de manifestam e causam minha inquietude. Olho para minha mão e ela já se encontra enrugada, as unhas meio escuras e frágeis. Ponho as mãos no bolso mais do que rápido para que os outros não vejam, mas não creio que era possível esconder. Talvez fosse pela distração dos outros. Os outros, eles, conversam e se amam discretamente pelos cômodos, e eu entro no banheiro a cada segundo para verificar indícios de minha possessão – uns fios brancos na sobrancelha, bolsas que se formam, sutis, sob meus olhos. Está bastante escuro, madrugada, e todos os outros se encontram um pouco bêbados, creio que não perceberão.

3:39. Nos deitamos na cama de casal e os outros dois conversam sobre amenidades. Tento disfarçar a possessão virando de bruços porque sei que minha cara a essa altura já demonstra indícios claros – uma das minhas mãos já se encontra parcialmente negra e manchada, as marcas da velhice e da idade. Tenho vontade de chorar, mas não posso fazer isso ali, descaradamente, porque chorar é um crime tremendo naquela circunstância. Por isso desço as escadas rumo ao jardim, já vazio dos outros, mas não tenho coragem de ficar sozinho porque sei que assim que fizer isso, a possessão se dará por completo. Volto pra cama, falo alto, converso sobre coisas diversas afim de mantê-los acordados – quem sabe se, acordados, os outros impedem que esse processo se dê por inteiro?

4:00. Deixei os outros dormindo. Todos também dormem, amados, e eu penetro a escuridão da rua sem saber para onde ir, que caminho tomar, a forma negra que se sobrepõe ao meu corpo me torna invisível naquela negritude estendida pelas avenidas. Desobedeço umas indicações, tomo outras, e quando percebo estou perdido e isso estranhamente me excita. Sinais evidentes de uma possessão semi completa,

4:22. Resolvo ligar para pedir ajuda já sabendo da ineficácia. Os outros dormem e deixaram dormindo consigo uma pessoa, jovem, conhecida, e ao ouvirem a voz de um ser absolutamente peculiar no telefone, certamente pensarão que é trote. Um atende, não reconhece a voz – ela treme porque assim faz o corpo do possesso, de medo, de frio, de angústia acumulada sendo liberada em jorros vertiginosos. Desligo o telefone porque não adiantava mais fugir daquilo.

4:40. Me encontro completamente possuído. A sensação boa que é se deixar levar paga qualquer dano. Ando agora encarando a todos, peito inflado, um queixo erguido e violento, espero não cruzar ninguém. Resolvo ligar mais uma vez e ao que o outro diz alô e eu abro a boca para responder, escuto um latido que se emite de minha garganta.

5:00.

6:00. Durante o processo em que a possessão se completa, as patas me impedem de digitar sobre o teclado. Retornar a forma humana é duro, mas graças a Deus consigo atingi-la assim que o sol nasce e estendo, não a pata mas uma mão para uma lotação que vem adiante e ela para e eu vou embora sem que ninguém desconfiem de minha possessão.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Os casais e os sozinhos.

Casais. Casais para todos os lados. Nos vagões de metro, amarrando o cordão de suas blusas, dividindo seus chocolates, casais descendo na escada rolante, deitados no sofá no meio da sala escura, a TV desligada, subindo a rua Augusta, gente junta, um amor vazante e uma espécie de felicidade para esfregar na cara alheia, soando a risadas, ironias, que maldizem os sozinhos.
Os sozinhos, estes, arrastam-se pelos cantos vivendo um verso do Cazuza, migalhas dormidas do seu pão. Os sozinhos, porém, não se unem - orgulhosos demais para aceitar sua condição de sozinhos, não percebem que um casal é tudo aquilo que é de dois e que se ama, e que se eles se unissem, e se amassem, deixariam de ser sozinhos para se tornar um casal.
Ah, o amor! Esse mistério, esse produto tão caro e tão bem cotado em mercados internacionais, bolsas e pregões, esse minério raro do pré-Cambriano pelo qual eu daria um cheque pré-datado sem sequer ver sua aparência. O amor é um teatro.

Descrença

Um ímpeto ou uma idealização de momento; caminhos errados, a mão no lugar errado, a cabeça em um ombro alheio, uma descrença no que se prosseguirá assim que ela terminar sua frase, como se eu fizesse qualquer coisa só para cumprir um ritual, dar um ponto final a uma frase. Acho triste, mas aceitável que eu faça isso: agir. Mas torna-se tão incoerente essa ação quando vista após umas horas, com um distanciamento. Vou me sentir outra vez idiota, vou sentar novamente como idiota e ler como idiota que vou sendo, essas atitudes, elas me queimam aos poucos nesse sentido de simplesmente estar sendo. Seria fácil não ser eu. Como se um turbilhão me invadisse, eu pareço querer fazer as besteiras que faço só para depois poder lamentá-las embalado por sons que conheço de cor, como se ouvindo, nesses casos, Luiz Melodia ou Maria Bethânia, fosse ajudar, fosse causar esse promissor bálsamo à justamente uma atitude irremediável. Por que eu me perco as vezes nesses labirintos meus se fui eu quem os criou, ou melhor: se eu sou esses labirintos, sem concessões, sem frescuras, me assumo como esse amontado de paredes dispostas de forma irregular que monto feito um quebra cabeça para depois, ao brincar por entre elas, esquecer sua ordem, me perder e me machucar. Propositalmente, acredito. Qual é a profundidade disso tudo? Qual a necessidade de me apresentar assim, dessa maneira?, prazer, Leonardo, eu sou um cara pra lá de complicado.

domingo, 9 de maio de 2010

Perder tempo

Já que eu andava por esses tempos reclamando tanto da falta de descanso, do cansaço, do sono que ficava cada vez mais insuficiente se restrito ao meu período de cama e transformava, também em minha cama, os bancos dos ônibus que eu costumo pegar, já que eu reclamava dessas coisas, pronto, agora me deram esses dias inteiros para desaproveitar. Ando num contínuo desaproveitamento. Não sei o que fazer com tanta liberdade de horas e tempo, parece até estranho dizer isso, mas após me submergir nessas rotinas que foram meus primeiros meses de 2010 eu creio ter desaprendido a descansar. Essa doença da qual eu sofria ano passado, o excesso de tempo, me faz fazer as coisas cada vez menos. Ainda sim, ano passado eu tivesse uma meta objetiva, algo que me impelia a ocupar sumariamente meus dias. Mas esses tempos de agora não me atraem nem me impelem a fazer nada, pelo contrário, se arrastam assim como uns minutos pegajosos escorrendo numa parede áspera. Acho que, de fato, é um retorno ao meu estado do ano passado. Até Adriana Calcanhotto eu voltei a ouvir (ano passado eu passei por uns meses de vício nessa mulher, ouvia diariamente, todos os seus CDs, indo pro cursinho de manhã). Ai eu vou olhando pro lado, pelas estantes abarrotadas que cercam meu computador, e vou vendo os livros todos, On the road, Todos os fogos o fogo, Prazeres da Noite, A sangue Frio, Ficções, todos começados e misturados em suas metades, e mais alguns textos para ler para a faculdade, a filosofia de Hume que eu não entendi e agora tenho tempo para entender, mais os artigos do Charadeau, Burke, Freud e Maria Rita Kehl, e novamente, eu com um tempo absurdo podendo dar conta de toda a teoria da comunicação e da linguagem, e aqui, parado, vendo o dia passar atrás da janela, ouvindo Mulher sem Razão, ai ai, que tédio.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O derramamento das faces

Hoje a noite volto para a casa, após deixar Beatriz Castaneda na porta de seu apartamento em Higienópolis e subir por uma ladeira e virar a direita após cruzar as três ruas, como ela havia me indicado, alcançando a escada da estação Marechal Deodoro do metrô.
Quando era mais cedo, pensei verozmente em Daniel e em tudo que Daniel já significara para mim, em meu amor e amizade de irmão, e em como doía agora saber que já não era mais tão presente em minha vida e não sabia de minhas conquistas. Sismei em arranjar um encontro com Daniel, e talvez fosse possível se me prostrasse, à hora do almoço, frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, esperando que ele saísse com seus colegas portando uma bolsa a tiracolo e com os cabelos curtos, bastante baixos, uma diferença circunstancial frente aos cabelos cacheados que ele usava quando nos conhecemos. Mas havia uma preguiça em pensar nessa conversa que significa ir, aos poucos, derramando todas as passagens de minha vida que acontecera durante esses anos em que não nos falávamos – comentar sobre o teatro, as peças em cartaz, o prêmio do teatro universitário, e dividir com ele a recente viagem para Amsterdã.
Antes de cumprimentar os dois porteiros, Beatriz Castaneda vira-se para mim e pergunta se eu não iria demorar demais para chegar em casa, posso chamar um táxi, diz, e eu recuso, recuso veementemente, afirmando que chego em casa num instante após entrar no metrô. Minto. Possuo essa opção de mentir como uma dádiva, um remédio paleativo, e verter essa mentira sobre o roteiro que se desenha ao nosso redor, nosso espaço extralingüístico, é uma opção e uso-a com todo meu empenho. Chego em casa num instante, Beatriz, e subo as ruas em direção à estação, arfando.
Algo no rosto de Beatriz me lembra Carola. Depois que partiu, vejo Carola em todos os instantes, em rostos alheios, a face derretida que pinga sobre outras diversas faces, mas algo no rosto de Beatriz me lembra Carola, seu nariz meio turco, a pele branca, Beatriz me dizia que era judia e eu acreditava piamente porque fazia sentido – ela costumava levar faláfs em potes herméticos para comer nos intervalos das aulas e morava em Higienópolis. Já havia desconfiado que Beatriz me lembrava alguém, mas talvez um espaço em branco em minha mente, desenhado ou apagado pela dor da ausência de Carola me impedia de entender essa ligação. Daniel, que se apagara juntamente com Carola, ia se desenhando sob o rosto de um outro colega, alguém cujo nome eu não sabia mas que sentava diariamente próximo a mim por algumas aulas. Conversamos algumas vezes e sua risada era igual, embora fosse um pouco mais moreno e tivesse os dentes tortos. No caminho até a casa de Beatriz, pergunto se ela conhece aquele rapaz que sentava na fileira da frente, e ela diz que sim, ele mora em meu prédio, diz ela, por que? Não é nada, lembra um amigo meu. Ela vira a cabeça para a janela do ônibus e, de perfil, ela me remete a Carola ainda mais, os detalhes hebraicos de sua boca, seu queixo, mas Beatriz possui os cabelos lisos, um tom de castanho que beira o loiro, e era escusado pensar que Beatriz parecia Carola porque quando Carola virava-se de costas para mim ou mesmo de lado, meu nariz era logo afagado pelo cheiro floral daquela massa de cabelos ruivos e cacheados, presos de qualquer modo por um grampo de ponta descascada – os grampos, todos, Carola mordia com aflição antes de usá-los.
No primeiro vagão em que entro, vejo mudos (ou surdos?) conversando em libras e acho extremamente bonito. Tenho esse dom de achar as coisas bonitas, os gestos, entre dedos e sinais vou buscando as palavras e tento descobrir se são mudos ou surdos efetivamente. Havia alguém que comentara sobre o grito do afásico. As mãos me remetem às mãos de Carola, os sinais que ela também falava com seu irmão, este sim era surdo. É um afásico, dizia Carola, de fato não aprendeu a ler ou a ouvir, ele emite sons e os sons emitidos por ele eram como grunhidos, porcos ou cavalos indignados, gritando por fome, dor, desespero. Segundo Lyotard, o grito do afásico era a verdadeira comunicação, a expressão genuína do que há de mais transversal em nossa linguagem. O grito do afásico é genuíno, digo, e Beatriz me pergunta do que estou falando. Beatriz Castaneda, já te disse que parece demais com o grande amor da minha vida? Ela sorriu enquanto contava sobre seu namorado, o homem que tirou sua virgindade e por quem ela sentia ainda imenso amor. Não saberia se desvincular dele tão facilmente, a visão dos corpos estirados na cama lado a lado, a ansiedade do momento, magicamente Beatriz foi se desenhando para mim, pude perceber que além do rosto de Carola ela possuía também o riso de Carola no canto do lábio fino, umas sardas típicas de gente ruiva ou judia, ia tremelicando a medida em que ficava encabulada com minhas cantadas.
Ao me despedir de Beatriz Castaneda, subo a rua rumo ao metrô e atravesso três ruas iguais, sendo que na terceira encontro o rapaz que me lembrava Daniel, descendo pelas ruas com um cigarro aceso entre os dedos e me dá um sorriso tão amarelo quanto seus dentes, um sorriso afásico, um sorriso em libras, típico daqueles que não tem certeza se se conhecem, acho engraçadissimo o fato de que posso não conhecê-lo, tampouco saber seu nome, mas sei seu rosto há um tempo impreciso, desde que Daniel e eu brincávamos no hall entre nossos apartamentos, quando nem sonhávamos que um dia ele iria roubar Carola de mim, que um dia eu iria estar nessa rua reconhecendo sua face na face de outro homem com quem não tenho intimidade nenhuma. Tudo bem? Ele diz. Tudo certo, acabei de deixar Beatriz em casa. Ele se mostra consternado, talvez a pressa, ela me disse que vocês moram no mesmo prédio. Sim, é verdade, ele diz e acena um tchau, se despede, e desce a rua.
Descendo a escada, vejo os mudos (ou surdos) conversando em sinais e descubro que o tempo era uma grande bobagem. Não via Carola fazia meses, um ano talvez, e eu tentava veementemente não me esquecer dos detalhes de seu rosto, ele havia sido apagado em minha memória mas não em meu coração, eu enxergava as linhas que circundavam sua boca porém mais do que isso, eu enxergava as linhas que saiam de dentro dela, a continuação de suas veias, sua língua, eu ia buscando esses detalhes de Carola por entre as coisas, pelos lugares onde eu passava, enquanto os mudos continuavam a fazer sinais tão bonitos que eu ria, eu observava pelo vagão as pessoas e a memória de Beatriz Castaneda ia ficando avivada, mas aos poucos, como em um retrato que eu pudesse apagar e redesenhar, os cabelos castanhos de Beatriz Castaneda foram se encaracolando e tornando-se ruivos e eu me lembrava do dia peculiar em que eu subia a rua do colégio de freiras onde Carola estudava e encontrava Daniel – Daniel com o sorriso amarelo no rosto, pego em um lugar estranho, o que você faz aqui do outro lado da cidade? E Daniel assumia que viera encontrar Carola, vim encontrar ela, dizia, é melhor acabarmos com isso de uma vez, dizia cabisbaixo, incomodado, preciso ir logo, nós nos amamos, e naquele dia eu perdia minha mulher e meu melhor amigo.
Antes que o apito soasse e a porta fechasse, eu entendia como que por uma epifania que Beatriz Castaneda era Carola e o rapaz que morava em seu prédio era Daniel, as faces de uns derramadas sobre suas caras, os cabelos diferentes, aquisição de outros hábitos, Daniel com um cigarro nervoso em suas mãos, e quis gritar o grito do afásico, por que Carola e Daniel faziam isso então?, para que senão para estarem perto de mim?
Antes que eu pudesse correr, que pudesse retornar ao apartamento de Beatriz Castaneda, de alcançar Daniel na curva da rua, a porta se fecha e sinto que era tarde demais, mesmo que eu descesse na próxima estação e fizesse o trajeto de volta, mesmo que eu ligasse, algo se perdia, uma oportunidade. Me sento fatigado em um banco e observo, calmamente, os mudos (ou surdos?) conversarem entre si.
Uma massa de cabelos ruivos me chama atenção mais a frente. As pernas finas cruzadas, uma elegância de mulher magra e pequena, poucos seios, uma blusa lisa, a mulher sentada logo a frente que eu tento enxergar e parecia ser Carola me confunde. Meu coração dispara em um tom musical, um descompasso, penso estar louco e não consigo enxergar sua face porque do lugar onde estou os surdos (mudos?) se sobrepõem ao rosto da mulher ruiva. Logo ela se levanta, a face derramada, e descubro que ela não é Carola mesmo e também não é ninguém. O rosto de Carola fica despejado, vertido sobre uma bandeja incólume que se chamava Beatriz Castaneda.
(Volto para casa, esta noite, com uma sensação de vazio que me consome, e vou descendo pelas ruas, aos poucos, me desfazendo do que sobrava de mim em mim, me livro primeiro de um maço de cigarros vazio, depois de um par de óculos, depois abro a minha bolsa sobre uma cesta de lixo e deixo os papéis todos caírem com liberdade de meretrizes ou garotos de rua, e vou descendo mais e mais, vou deixando pelas ruas as provas desse crime irrefutável e passional que sou: eu. Antes de chegar em casa eu ainda abro minha carteira e queimo, junto de meus documentos, as fotos de Carola e de Daniel que eu guardava, e também a foto que eu tinha com Daniel, abraçado, em meu aniversário de quinze anos. Abro a porta de casa e, ao adentrar a sala de estar, passo incólume sobre as caras assustadas de meus pais que se perguntam, certamente, quem é esse estranho que invade nosso lar? Mas antes que eles se mexam, eu sigo até a porta do banheiro, adentro o ambiente, ligo a torneira e lavo de minhas mãos e pescoço os últimos pedaços que iam se soltando, levemente, de mim por mim, e ao erguer o rosto para o espelho não vejo nada além de uma face em branco).