domingo, 16 de maio de 2010

Possessão

(ou a transformação por Twitter)

3:20. Começa a possessão pelas pontas das unhas, vai se espalhando pelo corpo todo, braços, pernas, se estende da ponta de cada pelo eriçado e penetra nos poros, vaza e escorre epiderme abaixo. Eram pequenas cápsulas desse algo negro que, quando inteiras, são inofensivas. Mas um banco onde estava quebrou e, ao cair, estouram as cápsulas e o seu conteúdo negro vazou e me invadiu por completo.

3:35. Os primeiros sinais dessa possessão de manifestam e causam minha inquietude. Olho para minha mão e ela já se encontra enrugada, as unhas meio escuras e frágeis. Ponho as mãos no bolso mais do que rápido para que os outros não vejam, mas não creio que era possível esconder. Talvez fosse pela distração dos outros. Os outros, eles, conversam e se amam discretamente pelos cômodos, e eu entro no banheiro a cada segundo para verificar indícios de minha possessão – uns fios brancos na sobrancelha, bolsas que se formam, sutis, sob meus olhos. Está bastante escuro, madrugada, e todos os outros se encontram um pouco bêbados, creio que não perceberão.

3:39. Nos deitamos na cama de casal e os outros dois conversam sobre amenidades. Tento disfarçar a possessão virando de bruços porque sei que minha cara a essa altura já demonstra indícios claros – uma das minhas mãos já se encontra parcialmente negra e manchada, as marcas da velhice e da idade. Tenho vontade de chorar, mas não posso fazer isso ali, descaradamente, porque chorar é um crime tremendo naquela circunstância. Por isso desço as escadas rumo ao jardim, já vazio dos outros, mas não tenho coragem de ficar sozinho porque sei que assim que fizer isso, a possessão se dará por completo. Volto pra cama, falo alto, converso sobre coisas diversas afim de mantê-los acordados – quem sabe se, acordados, os outros impedem que esse processo se dê por inteiro?

4:00. Deixei os outros dormindo. Todos também dormem, amados, e eu penetro a escuridão da rua sem saber para onde ir, que caminho tomar, a forma negra que se sobrepõe ao meu corpo me torna invisível naquela negritude estendida pelas avenidas. Desobedeço umas indicações, tomo outras, e quando percebo estou perdido e isso estranhamente me excita. Sinais evidentes de uma possessão semi completa,

4:22. Resolvo ligar para pedir ajuda já sabendo da ineficácia. Os outros dormem e deixaram dormindo consigo uma pessoa, jovem, conhecida, e ao ouvirem a voz de um ser absolutamente peculiar no telefone, certamente pensarão que é trote. Um atende, não reconhece a voz – ela treme porque assim faz o corpo do possesso, de medo, de frio, de angústia acumulada sendo liberada em jorros vertiginosos. Desligo o telefone porque não adiantava mais fugir daquilo.

4:40. Me encontro completamente possuído. A sensação boa que é se deixar levar paga qualquer dano. Ando agora encarando a todos, peito inflado, um queixo erguido e violento, espero não cruzar ninguém. Resolvo ligar mais uma vez e ao que o outro diz alô e eu abro a boca para responder, escuto um latido que se emite de minha garganta.

5:00.

6:00. Durante o processo em que a possessão se completa, as patas me impedem de digitar sobre o teclado. Retornar a forma humana é duro, mas graças a Deus consigo atingi-la assim que o sol nasce e estendo, não a pata mas uma mão para uma lotação que vem adiante e ela para e eu vou embora sem que ninguém desconfiem de minha possessão.

4 comentários:

Bruh disse...

??? (oi?)

Anônimo disse...

liga não, escrevi isso depois de ter passado a madrugada acordado na casa de uma amiga, tava meio dormindo em pé.

Isabel Aidar disse...

??? (oi?) [2]

Piin (: disse...

que lindo. ah se eu tivesse essa sua capacidade produtiva...