quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Divina Comédia

Para a Bê.
Beatriz esperou por dias e dias, até mesmo quando já estava em uma estação de trem, e Dante que não vinha. Sentada, inicialmente, com as malas aos seus pés, e depois sentada sobre as malas, via o calor que se estendia sobre à tarde e apagava o suor da testa com o dorso da mão – prendeu os cabelos num rabo de cavalo, se abanava. Aquela estrada de terra que se estendia à sua frente, aquele interior de interior que ela olhava, apenas uns canaviais à sua frente, mato mato mato, igrejinhas ao fundo, construções de outro século, Beatriz esperara por Dante mais de uma vida. E Dante não chegava. Perdera-se em algum ponto do caminho (uma pedra?) entre o último círculo do inferno e o sétimo céu. Por um momento, Beatriz pensara que sem Dante não seria feliz porque sem Dante sua história não se completaria. E aí eis que ela arrumou suas malas e, cansada de se esperar, foi para a estação de trem: vazia.
Uma vida inteira cercada de anjos. Que a atendiam e lhe davam sorrisos fáceis, gracejos, roupas brancas – o céu era um grande jardim com crianças brincando, encravado no meio do sertão, poucos luxos na verdade, água, pão, frutas doces e mesmo Beatriz morava em uma casa de pau a pique. Quando sentia tristeza ou solidão se lembrava que era sobretudo um ser humano porque os seres dali não sentiam essas coisas – esses sentimentos ainda verdes, nada maduros, como a melancolia.
Um dia Beatriz despertou de um estado anterior de inconsciência – um sinal. Nascera para esperar por Dante. E descobriu que não era isso que queria mais. As roupas brancas, os varais vazios, esvaziou também algumas penteadeiras, uns álbuns de fotografia com fotos em preto e branco (seu pai, sua mãe, seus antepassados) e trancou cada uma daquelas coisas em três maletas de couro. Atravessou a sala, a varanda, e desceu por algumas ruas até que chegasse ao centro daquele lugar, onde as ruas já eram de pedras, e ponderou por alguns instantes sobre o que fazia, parada em frente à igreja da matriz. Se esquecera, então Beatriz se lembrara, do seu caderno. Voltou para a casa onde passara os últimos anos, sozinha, à espera de Dante, e encontrou, enrolado em uns panos velhos, na segunda gaveta da cômoda, o caderno onde transcrevera todas as sensações que fora aprendendo com o tempo. De começo, pensava, era um ser nulo, uma criação de argila posta naquele céu por alguma força superior afim de esperar. E era oca de sentidos, não sentia, mas não como os anjos que a cercavam. Beatriz não sentia porque não aprendera a sentir. E foi, aos poucos, seu jeito humano nascendo, o aprendizado de uma sensação: a dor, o amargo, um riso, uma geléia de amora tocando a ponta da língua. Os cheiros que a cercavam naquela cidade: o canavial que se estendia por todo o redor do céu, em circulo, a dama da noite, os lampiões e as fogueiras e o cheiro de queimado e fuligem que invadia seu nariz toda noite. No caderno, Beatriz escrevia tudo. E conhecia também, porque o conhecimento não era dado de graça, tampouco era uma concepção essencialmente humana – a literatura se fez descobrir por ela. Um anjo, ou mil. As palavras, esses doces mistérios, ainda não os deciframos como queremos. Que valor tem a literatura? É sempre um grito, o que varia é seu sentido: para fora ou para dentro, leve ou pesado, e ultimamente Beatriz gritava para dentro porque com o lado de fora estava leve, vazia, descarregada, totalmente cândida.
Aos poucos, Beatriz foi descobrindo, pelas ladeiras e se guiando pelos caminhos que aquelas casas contavam, à estação de trem, e agora ela podia sair dali sozinha. Não mais esperar por aquilo que seria: um resgate? Uma fuga? Uma evasão. Sobre sua cabeça um céu tão azul que doía nos olhos, e um verde que se estendia pelos canaviais à sua frente: decidia, cruzaria o sétimo círculo do céu.
E encontrara a estação de trem vazia, desativada quase, e se não fosse essa suave esperança que se desfazia na boca de Beatriz em sair daquele lugar, ela talvez voltasse a sua espera eterna. Sentada, descalçou os sapatos e esperava agora, um trem. A nuca quente, os ombros ardidos, sobretudo naquela estação havia uma sombra e isso já lhe confortava: um sinal. Aquela tarde era igual à todas as outras que Beatriz passara no céu: quente, com uma brisa acolhedora – as casas, ao longe, telhados e parapeitos, contornos coloridos, centenas de anjos correndo e brincando.
Ir embora é sempre uma escolha, pensou Beatriz, o queixo apoiado, olhos cerrados. Mas ir embora depende do referencial: porque ir embora para quem chega é simplesmente chegar: sair do sétimo céu e atravessar todos os infernos adiante seria uma fuga se visto do céu – mas seria uma chegada se visto da terra. E era escusado, aquela altura, saber se céu ou terra eram meros referenciais. Primeiro porque, sendo ali sua morada, um céu de toda vida, com canaviais, anjos, igrejinhas, casas de pau a pique, roupas brancas no varal, aquilo era sobretudo um passado. E segundo porque à sua frente, trilhos de ferro e trem, insegurança, lhe esperava um destino, com ou sem um Dante, sozinha, na imensidão desassossegada que lhe diziam ser o inferno. E este era agora seu futuro.
As palavrinhas que corriam soltas caderno afora, linhas preenchidas, e Beatriz já não sabia o que fazer com elas. Toda palavra tem uma história por trás de si – toda mão que a escreve é uma trajetória. itinerante, uma nostálgica maquina que insiste em registrar o inregistrável
Beatriz se cansava daquele sol e daquele céu azul que agora era pesado já sobre sua cabeça – por uma ou duas vezes piscou e os olhos carregados se fecharam mais do que se abriram: uma mala caiu. Mas ao fundo, e com o som do silvo agudo ela despertou rapidamente, vinha no final daqueles trilhos que se estendiam por todo o cruzamento dos sete infernos, um trem. Que acabava de parar em sua frente, naquela estação, e então quando Beatriz embarca ela deixa no banco da estação o caderno porque não faria mais sentido, nem seria mais possível, registrar um futuro desconhecido.

Um comentário:

Bê disse...

Sabe que eu sempre tive um pé atrás com a Beatriz, eu sempre achei que ela uma personagem sem carater. Obrigada pela nova visão de mundo, e pelo presente de aniversário.