quinta-feira, 6 de maio de 2010

O derramamento das faces

Hoje a noite volto para a casa, após deixar Beatriz Castaneda na porta de seu apartamento em Higienópolis e subir por uma ladeira e virar a direita após cruzar as três ruas, como ela havia me indicado, alcançando a escada da estação Marechal Deodoro do metrô.
Quando era mais cedo, pensei verozmente em Daniel e em tudo que Daniel já significara para mim, em meu amor e amizade de irmão, e em como doía agora saber que já não era mais tão presente em minha vida e não sabia de minhas conquistas. Sismei em arranjar um encontro com Daniel, e talvez fosse possível se me prostrasse, à hora do almoço, frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, esperando que ele saísse com seus colegas portando uma bolsa a tiracolo e com os cabelos curtos, bastante baixos, uma diferença circunstancial frente aos cabelos cacheados que ele usava quando nos conhecemos. Mas havia uma preguiça em pensar nessa conversa que significa ir, aos poucos, derramando todas as passagens de minha vida que acontecera durante esses anos em que não nos falávamos – comentar sobre o teatro, as peças em cartaz, o prêmio do teatro universitário, e dividir com ele a recente viagem para Amsterdã.
Antes de cumprimentar os dois porteiros, Beatriz Castaneda vira-se para mim e pergunta se eu não iria demorar demais para chegar em casa, posso chamar um táxi, diz, e eu recuso, recuso veementemente, afirmando que chego em casa num instante após entrar no metrô. Minto. Possuo essa opção de mentir como uma dádiva, um remédio paleativo, e verter essa mentira sobre o roteiro que se desenha ao nosso redor, nosso espaço extralingüístico, é uma opção e uso-a com todo meu empenho. Chego em casa num instante, Beatriz, e subo as ruas em direção à estação, arfando.
Algo no rosto de Beatriz me lembra Carola. Depois que partiu, vejo Carola em todos os instantes, em rostos alheios, a face derretida que pinga sobre outras diversas faces, mas algo no rosto de Beatriz me lembra Carola, seu nariz meio turco, a pele branca, Beatriz me dizia que era judia e eu acreditava piamente porque fazia sentido – ela costumava levar faláfs em potes herméticos para comer nos intervalos das aulas e morava em Higienópolis. Já havia desconfiado que Beatriz me lembrava alguém, mas talvez um espaço em branco em minha mente, desenhado ou apagado pela dor da ausência de Carola me impedia de entender essa ligação. Daniel, que se apagara juntamente com Carola, ia se desenhando sob o rosto de um outro colega, alguém cujo nome eu não sabia mas que sentava diariamente próximo a mim por algumas aulas. Conversamos algumas vezes e sua risada era igual, embora fosse um pouco mais moreno e tivesse os dentes tortos. No caminho até a casa de Beatriz, pergunto se ela conhece aquele rapaz que sentava na fileira da frente, e ela diz que sim, ele mora em meu prédio, diz ela, por que? Não é nada, lembra um amigo meu. Ela vira a cabeça para a janela do ônibus e, de perfil, ela me remete a Carola ainda mais, os detalhes hebraicos de sua boca, seu queixo, mas Beatriz possui os cabelos lisos, um tom de castanho que beira o loiro, e era escusado pensar que Beatriz parecia Carola porque quando Carola virava-se de costas para mim ou mesmo de lado, meu nariz era logo afagado pelo cheiro floral daquela massa de cabelos ruivos e cacheados, presos de qualquer modo por um grampo de ponta descascada – os grampos, todos, Carola mordia com aflição antes de usá-los.
No primeiro vagão em que entro, vejo mudos (ou surdos?) conversando em libras e acho extremamente bonito. Tenho esse dom de achar as coisas bonitas, os gestos, entre dedos e sinais vou buscando as palavras e tento descobrir se são mudos ou surdos efetivamente. Havia alguém que comentara sobre o grito do afásico. As mãos me remetem às mãos de Carola, os sinais que ela também falava com seu irmão, este sim era surdo. É um afásico, dizia Carola, de fato não aprendeu a ler ou a ouvir, ele emite sons e os sons emitidos por ele eram como grunhidos, porcos ou cavalos indignados, gritando por fome, dor, desespero. Segundo Lyotard, o grito do afásico era a verdadeira comunicação, a expressão genuína do que há de mais transversal em nossa linguagem. O grito do afásico é genuíno, digo, e Beatriz me pergunta do que estou falando. Beatriz Castaneda, já te disse que parece demais com o grande amor da minha vida? Ela sorriu enquanto contava sobre seu namorado, o homem que tirou sua virgindade e por quem ela sentia ainda imenso amor. Não saberia se desvincular dele tão facilmente, a visão dos corpos estirados na cama lado a lado, a ansiedade do momento, magicamente Beatriz foi se desenhando para mim, pude perceber que além do rosto de Carola ela possuía também o riso de Carola no canto do lábio fino, umas sardas típicas de gente ruiva ou judia, ia tremelicando a medida em que ficava encabulada com minhas cantadas.
Ao me despedir de Beatriz Castaneda, subo a rua rumo ao metrô e atravesso três ruas iguais, sendo que na terceira encontro o rapaz que me lembrava Daniel, descendo pelas ruas com um cigarro aceso entre os dedos e me dá um sorriso tão amarelo quanto seus dentes, um sorriso afásico, um sorriso em libras, típico daqueles que não tem certeza se se conhecem, acho engraçadissimo o fato de que posso não conhecê-lo, tampouco saber seu nome, mas sei seu rosto há um tempo impreciso, desde que Daniel e eu brincávamos no hall entre nossos apartamentos, quando nem sonhávamos que um dia ele iria roubar Carola de mim, que um dia eu iria estar nessa rua reconhecendo sua face na face de outro homem com quem não tenho intimidade nenhuma. Tudo bem? Ele diz. Tudo certo, acabei de deixar Beatriz em casa. Ele se mostra consternado, talvez a pressa, ela me disse que vocês moram no mesmo prédio. Sim, é verdade, ele diz e acena um tchau, se despede, e desce a rua.
Descendo a escada, vejo os mudos (ou surdos) conversando em sinais e descubro que o tempo era uma grande bobagem. Não via Carola fazia meses, um ano talvez, e eu tentava veementemente não me esquecer dos detalhes de seu rosto, ele havia sido apagado em minha memória mas não em meu coração, eu enxergava as linhas que circundavam sua boca porém mais do que isso, eu enxergava as linhas que saiam de dentro dela, a continuação de suas veias, sua língua, eu ia buscando esses detalhes de Carola por entre as coisas, pelos lugares onde eu passava, enquanto os mudos continuavam a fazer sinais tão bonitos que eu ria, eu observava pelo vagão as pessoas e a memória de Beatriz Castaneda ia ficando avivada, mas aos poucos, como em um retrato que eu pudesse apagar e redesenhar, os cabelos castanhos de Beatriz Castaneda foram se encaracolando e tornando-se ruivos e eu me lembrava do dia peculiar em que eu subia a rua do colégio de freiras onde Carola estudava e encontrava Daniel – Daniel com o sorriso amarelo no rosto, pego em um lugar estranho, o que você faz aqui do outro lado da cidade? E Daniel assumia que viera encontrar Carola, vim encontrar ela, dizia, é melhor acabarmos com isso de uma vez, dizia cabisbaixo, incomodado, preciso ir logo, nós nos amamos, e naquele dia eu perdia minha mulher e meu melhor amigo.
Antes que o apito soasse e a porta fechasse, eu entendia como que por uma epifania que Beatriz Castaneda era Carola e o rapaz que morava em seu prédio era Daniel, as faces de uns derramadas sobre suas caras, os cabelos diferentes, aquisição de outros hábitos, Daniel com um cigarro nervoso em suas mãos, e quis gritar o grito do afásico, por que Carola e Daniel faziam isso então?, para que senão para estarem perto de mim?
Antes que eu pudesse correr, que pudesse retornar ao apartamento de Beatriz Castaneda, de alcançar Daniel na curva da rua, a porta se fecha e sinto que era tarde demais, mesmo que eu descesse na próxima estação e fizesse o trajeto de volta, mesmo que eu ligasse, algo se perdia, uma oportunidade. Me sento fatigado em um banco e observo, calmamente, os mudos (ou surdos?) conversarem entre si.
Uma massa de cabelos ruivos me chama atenção mais a frente. As pernas finas cruzadas, uma elegância de mulher magra e pequena, poucos seios, uma blusa lisa, a mulher sentada logo a frente que eu tento enxergar e parecia ser Carola me confunde. Meu coração dispara em um tom musical, um descompasso, penso estar louco e não consigo enxergar sua face porque do lugar onde estou os surdos (mudos?) se sobrepõem ao rosto da mulher ruiva. Logo ela se levanta, a face derramada, e descubro que ela não é Carola mesmo e também não é ninguém. O rosto de Carola fica despejado, vertido sobre uma bandeja incólume que se chamava Beatriz Castaneda.
(Volto para casa, esta noite, com uma sensação de vazio que me consome, e vou descendo pelas ruas, aos poucos, me desfazendo do que sobrava de mim em mim, me livro primeiro de um maço de cigarros vazio, depois de um par de óculos, depois abro a minha bolsa sobre uma cesta de lixo e deixo os papéis todos caírem com liberdade de meretrizes ou garotos de rua, e vou descendo mais e mais, vou deixando pelas ruas as provas desse crime irrefutável e passional que sou: eu. Antes de chegar em casa eu ainda abro minha carteira e queimo, junto de meus documentos, as fotos de Carola e de Daniel que eu guardava, e também a foto que eu tinha com Daniel, abraçado, em meu aniversário de quinze anos. Abro a porta de casa e, ao adentrar a sala de estar, passo incólume sobre as caras assustadas de meus pais que se perguntam, certamente, quem é esse estranho que invade nosso lar? Mas antes que eles se mexam, eu sigo até a porta do banheiro, adentro o ambiente, ligo a torneira e lavo de minhas mãos e pescoço os últimos pedaços que iam se soltando, levemente, de mim por mim, e ao erguer o rosto para o espelho não vejo nada além de uma face em branco).

6 comentários:

companheira cronópia disse...

leo, é magnífico.

Lia Matinez disse...

Nossa leo, de verdade, adorei esse conto, ele está digno de grandes escritores! me pareceu mto um conto da marcia denser que eu li certa vez. meus parabéns!

Ignacio disse...

discordo, esse final está pra lá de borginiano (tipo, a duração do inferno manjas?)
mas gostei também leo, orgulhinho!

Anônimo disse...

qdo olhei esse texto jah pensei... ah não léo.. esse tah mto grande.. vo le não....uahahuahah(pensamento idiota)... mais algo me fez começar a ler.... qdo percebi jah tinha acabado e eu qria ler mais...=DD...tenho tto orgulho d vc!=DD

bel

Gabriel disse...

Leo, a tristesa e a beleza que tem nesse conto só mostram o quanto você está aprimorando o que escreve, da teimosia de tanto querer escrever. Confio que continue teimoso e tenha petulância de escrever cada vez mais e melhor.

ahuahauhau eu tinha que escrever uma parte mais sobria né, vai indo que voce ta no caminho certo cara. Tanto que esse vai ser publicado né^^

abração

Beatriz disse...

orgulhinho! [2]