domingo, 20 de junho de 2010

Clara

Cheguei por aqui testando passos falsos, dizia, uns olhares que não eram meus para chamar sua atenção. E eu continuava sentado naquele mesmo banco da padaria, como se sempre tivesse sabido que em algum momento Clara chegaria com alguns rascunhos debaixo do braço, pronta para começar o romance e pedir minha ajuda em sua produção, como se ela enxergasse por trás dos óculos, do casaco, alguém que também se dedicava a escrever, que vivia esse processo todo cada dia mais. E eu vivia, incessantemente, a buscar uma poesia escondida nas coisas, nas logomarcas, nos letreiros, uma poesia que ia sussurrando de dentro das coisas e justificasse todo aquele desenrolar das horas.
Conheci Clara quando esta precisava de um tempo para escrever. Escrever um romance, ela queria, e queríamos coisas juntos e portanto nos unimos por esse objetivo em comum, como um fio em cuja ponta cada um aperta forte a mão: um fio, um romance.
Clara contou para mim de seu antigo parceiro, um casamento frustrado que não ocorrera em uma igreja mas em uma editora. Eles se conheceram quando ela tentava publicar uns poemas, a editora recusava mas ele a conquistara dizendo que eram poemas bons, publicáveis, que incitavam o que havia de liberdade nas pessoas – que fariam por libertar a liberdade contida, guardada desde Woodstock no coração de cada um. Sentiu que se completavam e foram viajar de carro por aí, ela largou a faculdade e ele a seguiu, ambos em busca de algo que motivasse seu romance. No começo éramos mais radicais, penso, ouvíamos Janis Joplin em som alto, no carro, um fusca velho que mais parava do que andava e não hesitaríamos na hora do refrão, em soltar um grito estridente e rouco – aos poucos, porém, aos poucos passamos a sentir vergonha de gritar com ela e nos restringíamos, assim, a cantarolar o Kozmic blues num sussurro desafinado, cada vez mais silencioso, silencioso, silêncio... Nessa época eu passei a me contentar em fechar os olhos e viajar pelos solos de guitarra, imaginando que eu era feliz. Então, pensei, então hoje você me procura com esse intuito de escrever seu romance? Poderia questionar, discutir, dizer que não estava ali para somente ajudar mas queria também ser ajudado, dizer que tinha muito mais coisas a oferecer para ela e para qualquer outra mulher que passasse por aquele banco daquela padaria naquela manhã, que não era meramente isso que todos viam em mim, um repertório de palavras e frases prontas. Mas não. Me entregava, então, desde aquele momento, à Clara e à seu projeto, e decidi que iria completar os espaços vazios em seu livro, iria preencher seus parágrafos e juntos iríamos criar aquele romance.
Nos mudamos então para um apartamento no centro da cidade, razoável, paguei o aluguel por um mês somente porque não acreditava que o projeto todo duraria muito mais que aquilo, e seguimos em frente. Quando abri a porta do elevador, Clara segurava apenas uma caixa nas mãos onde residiam poucas coisas, objetos pessoais que não preencheriam sequer uma esquina das paredes da nossa nova morada. Convidei-a para entrar e ela entrou, lisonjeada, e ao fechar a porta nos encaramos e percebemos que não sabíamos muito bem o que fazer, ninguém sabe, afinal de contas, nesses primeiros encontros cujos objetivos estão bem delimitados tudo fica muito difícil. Como um casal que combina que vai se amar, encontrar-se naquele estado e sentar-se no chão para começar a escrever qualquer coisa que fosse, um poema, uma lauda de um artigo, tudo seria tão artificial e irrisório e colocaria tanto a perder nossa idéia final que decidi primeiro por oferecer à Clara um café. Quer um café? Disse, e ela assentiu com a cabeça, enquanto investigava o espaço ao nosso redor e se encaminhava para a janela.
Assim que colocou a primeira folha na máquina de escrever, sentou-se no chão de pernas cruzadas, fez um coque displicente no cabelo (trajava uma camiseta grande larga e branca) passou a calmamente esmurrar as teclas daquela máquina e foi assim que nosso romance começava, com a seguinte frase: deveria ser um crime o desamor ou a desunião dos seres, deveria ser um crime zombar do amor e da dedicação dos outros.
Entreguei sua xícara e Clara pegou com sua mão esquerda, sorrindo levemente e dizendo obrigada. Sentei-me ao seu lado e li as primeiras linhas escritas por ela. Não sabia direito o que dizer, não sabia se deveria dar palpites, mas naquele momento descobri que não era assim que se fazia um romance. Um romance, pensei, para ser vivido, teria que ter as mãos de cada um inseridas em sua construção. Não as mãos solitárias, os dedos isolados, mas as mãos conjuntas, simultâneas, até mesmo confusas, batendo teclas ao mesmo tempo sem que houvesse a necessidade de se dizer, premeditadamente, o que cada um deveria escrever.
Não creio que Clara compreendeu meu parecer de imediato. Franziu a testa ao me ouvir dizer isso, levantou-se com a mesma propriedade que todos os artistas se levantam e se dão o direito de saírem de cena e foi para um outro cômodo do apartamento (que, por não ter mobília nossa, poderia tanto ser uma sala quanto um quarto).
Ao final de nosso terceiro dia naquele apartamento, eu já me irritava com Clara e passara a enxergar todos os seus defeitos – as unhas roídas até a base, as cutículas arrancadas com os dentes que sempre deixavam feias marcas sanguinolentas ao redor de seus dedos, a mania de tossir sem colocar a mão em frente à boca e principalmente: o absurdo hábito de não escrever até o final da linha nas poucas folhas de papel que dispúnhamos para escrever seu romance. Clara ia escrevendo, simplesmente, sem sequer pensar em economia de papel e quando lhe ocorria que era bom mudar de linha, ela mudava, sem lógica, sem uma decisão premeditada. Eu fora delegado a um mero expectador de seu processo criativo – às vezes, quando tinha uma dúvida na grafia de uma palavra ou na colocação de um pronome, ela ponderava, roia as unhas e depois o topo de um lápis que usava para prender os cabelos e somente quando o lápis preto soltava cascas de verniz úmidas por sua saliva em seus dentes, ela me fazia a pergunta: o que devo usar aqui? Ia tecendo uma colcha de letras. Cada batida que eu ouvia do teclado no papel era como uma agulha transpassando as fibras de um tecido e o som emitido pela maquina, por mais que àquela altura eu já estivesse enjoado da companhia de Clara, se tornava músicas para meus ouvidos aflitos de música. Eu sempre escrevi acompanhado de som, disse à ela, ao que ouvi como resposta: eu também.
Clara havia trazido junto de suas tralhas alguns discos de vinil e no fundo do único armário que havia sido entregue dentro do apartamento quando eu o alugara, estava um empoeirado toca-discos de 87. Amo tua voz e tua cor, e teu jeito de fazer amor. Dizia a música que passamos a ouvir, um vinil antigo de Kleyton e Kledir.
No final da tarde, Clara sempre parava de escrever e ia para a cozinha preparar um chá ou um café. Mesmo nos dias mais quentes não perdemos esse hábito – o sol entrava pela janela e tornava o apartamento uma estufa. Lá pelas cinco da tarde os raios inundavam o chão de assoalho e parecia que estávamos dentro do próprio sol – eu via tudo em laranja, inclusive a pele morena de Clara que ficava mais morena e mais bonita à cada tarde. Enquanto ela passava o café ou coava o chá, eu aproveitava para revisar seu texto e acrescentar coisas, linhas, redigia mais alguns itens em seu romance e acrescentava, sem sua permissão, o que eu tinha de especial para dar à literatura: o lirismo e a paixão que eu guardava, toda comigo, sobretudo essa falta de opção que eu também tinha, de não poder viver sem a literatura e de enxergar naquelas linhas todas preenchidas e naquelas palavras, união de letras, não um processo de construção mas sim de exorcismo. Sentia Clara em cada letra, assim como ela deveria me sentir em cada correção minha. Aos poucos poderíamos nos conhecer por meio daquelas palavras, escritas, impressas em um papel que também aos poucos se acabava, e fazer um romance se tornava muito mais do que uma tarefa diária, um trabalho, se tornava a reação espontânea de nossos corpos e de nossas mentes.
Foi no sétimo dia em que Clara pensou em desistir: passou o dia inteiro em frente à máquina e não saía nada de dentro de si. Tentei fazer com que ela se acalmasse, apliquei em seus ombros uma massagem chinesa, ela fumou dois cigarros de uma só vez, depois olhou para a janela angustiada e disse saber que não era capaz. Clara já havia começado a escrever dois livros anteriormente – eu sabia apenas do primeiro, aquele que a fizera conhecer o editor que lhe prometera a rota 66 da geração beat. Mas o segundo fora um livro de poemas que chegou a ser publicado e não fora lido por ninguém. Ela me revelou isso enquanto se aninhava em meu colo e me deixava constrangido – há tanto tempo que o afeto para mim era apenas uma palavra, um substantivo composto por cinco letras que eu usava em muitos contos, que eu já não sabia mais como ele funcionava na prática. Em sua bolsa ela guardava um exemplar desse livro de poemas mal-sucedido: uma capa rosa, uma edição velha. Um presente do editor para mim, quando me deixou, disse ela. Escrevi esses poemas dia após dia, quando terminamos nosso encontro de vez, e mandei para que ele lesse. Incapaz de reagir com a reação de um ser humano qualquer, ele disse que iria publicá-los. E assim o fez: foram um fracasso. Em uma folheada no livro, pude perceber que eram poemas primários, coisa ruim mesmo, mas não queria dizer isso ou sequer acreditar nisso porque na minha cabeça bastante confusa não tinha como um poema, esse jato de palavras que sai não da boca, mas de uma mão em chagas que só possui como alternativa escrevê-lo, ser ruim ou ser de qualidade duvidosa. Um poema não tem explicação ou julgamento, pensei comigo. É uma verdade, apenas, uma verdade que se for feia, mal feita, revela apenas isso que somos: feios, mal feitos.
E no fundo Clara era tão solitária que deixava isso transparecer em suas mãos sempre em busca de algo para segurar, seus dedos tão propícios a se enroscarem em curvas, em canos, em cachos do meu cabelo, a minha cabeça deitada em suas pernas, as lágrimas de Clara que escorriam pelo meu cabelo e descreviam um percurso peculiar por entre meus cachos e escorregavam, por final, por minha testa, e continuavam cada vez menos espessas e encorpadas até minha boca, onde eu as provava e concluía: a dor de Clara era uma dor salgada.
Foram duas semanas em que nos trancamos naquele apartamento, dedicados à fina arte da escrita, sem móveis, cercados apenas de alguns de nossos livros preferidos, uma vitrola com todos os vinis antigos, musica antiga, um fogão, algumas garrafas de vinho e, sobrevivendo à base de macarrão instantâneo, nos pusemos a escrever a quatro mãos aquele que seria o romance de nossas vidas, livremente inspirados pelo exemplo mais belo que foi o de Jack Kerouac, que após uma viagem do exterior para o interior também se trancou em um apartamento por algum tempo e se pos a escrever aquela que seria a grande obra de sua vida. Digo isso porque aos poucos seu romance foi se tornando meu, ou, tudo que havia de meu ou dela foi se tornando nosso, e quando Clara passava por seus momentos hiatos eu a abraçava primeiramente e em seguida a afastava da maquina de escrever, com delicadeza, com sutileza e cuidado, e ia esmurrando as teclas na tentativa de imitar seu modo de dizer aquilo que queria. Ao final das duas semanas, nos deparamos com trezentas e oitenta e cinco páginas datilografadas e revisadas, empilhadas ao lado da máquina de escrever no assoalho ensolarado do chão.
Terminamos o livro no final da tarde e ficamos um momento em silêncio, observando o sol mais uma vez invadir o apartamento e nos fazer suar dentro daquela estufa de luz que se tornava a sala de estar.
Quando saímos do apartamento naquele que seria o décimo quarto dia de nossa estada, vimos nas ruas de fora um outono mais ensolarado que aquele que havíamos deixado na porta quando adentramos nosso espaço de criação. Nossa primeira reação foi encontrar uma banca de jornal, afinal Clara queria comprar uma revista e eu precisava de cartões telefônicos, e logo após isso iríamos para uma padaria de esquina tomar um pingado e um pão na chapa (o nosso café acabara no oitavo dia e desde então eu passava as manhãs sonolento sem conseguir despertar direito, até que Clara jogava em minha cabeça uma balde de água fria, simplesmente sussurrando ao meu ouvido: acorde).
A surpresa de Clara foi maior ao não reconhecer a dona da banca, e depois perceber que era a mesma mulher de antes, mas com os cabelos levemente grisalhos e curtos, as rugas que ela já tinha na época em que o cabelo era completamente tingido de ruivo se transformaram em sulcos fortemente vincados ao redor de sua boca. Os meninos que brincavam na rua quando entramos no apartamento, duas semanas atrás, e que ouvíamos constantemente de nosso andar, ao retornarem da escola, agora já eram homens feitos, uns freqüentando a universidade e outros trabalhando. Abismado, segui até a padaria com Clara em meu encalço. O senhor simpático do balcão já não estava mais lá – fora substituído por um novo funcionário, um cearense sorridente com um forte sotaque proeminente. Morreu, disse-nos, ao perguntá-lo sobre o que havia acontecido com o senhor simpático de antes. Clara estava intrigada, mas eu me encontrava tranqüilo. Sabia que em duas semanas muita coisa podia ter acontecido. O tempo passou, ela me disse, eu respondi que sim, que havia passado, mas que ela não precisava ter medo porque tinha agora seu livro pronto, debaixo do braço.
Livres de qualquer compromisso porque entre Clara e eu o único vínculo construído fora rompido assim que digitamos o ponto final de seu romance, me senti livre para perguntar o que antes fora inquestionável. É para ele, não é? Perguntei. É para o editor que você escreve. Para provar que era capaz, não de escrever um romance, mas de vivê-lo, em sua intensidade, de transcrever para o papel cada segundo gasto em frases soltas, em beijos, cada segundo gasto na cama, as mãos entrelaçadas, os dedos, é para ele que você escreveu esse romance. E Clara erguei seu rosto bastante vermelho, um rosto que agora eu percebia que também sofrera as ações do tempo, tinha vincos ao redor da boca também e os cachos eram prateados dessa vez, sim, disse, é para ele que eu escrevi.
Assenti com a cabeça. Não havia muito mais o que fazer se não aproveitar o restinho de tarde e o magnífico sol outonal daquele dia e por isso eu deixaria Clara sentada no meio fio enquanto ela lamentava alguns remorsos restantes, e ia relendo seu romance para pode entregá-lo, intacto, ao seu editor. Pensei em algum boteco do centro da cidade, mas talvez para a hora eu precisasse mesmo do meu café, e de companhia, quem sabe alguns desses senhores que não saem das padarias do centro. A primeira página, entretanto, estava comigo. Não sabia bem porque, nem entendia a finalidade, mas antes de sairmos do apartamento foi Clara quem a retirou cuidadosamente do monte, a dobrara em quatro e a enfiara no bolso de meu paletó. Olhei para trás com cuidado – as lágrimas de emoção corriam soltas por seu rosto sardento e eu via um sorriso que levemente se esboçava. O sol era forte, seu corpo era por demais laranja àquela hora da tarde e eu preferia nem me lembrar das horas e dos dias em que eu passara com aquela garota, trancado no apartamento. Precisava por minha vida em ordem, dessa vez, e o primeiro passo era cancelar o contrato com o proprietário. Abri a folha que guardava no bolso do meu paletó e li com toda atenção, pensando que aquilo que se passara ali dentro fora um sonho: deveria ser um crime o desamor ou a desunião dos seres, deveria ser um crime zombar do amor e da dedicação dos outros.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Intimidade

(Notas para uma possível peça de teatro.)

Ao som de 'Pérola Negra' do Luiz Melodia, os atores entram em um palco vazio com alguns elementos de casa (talvez fotos jogadas no chão, uma máquina de escrever creio que seja uma boa ideia, uma vitrola de onde pode estar vindo a música do Luiz Melodia. Uma luz amarela seria ideal, e talvez ao fundo a ideia de um cenário que represente janelas de um prédio, enfim, uma espécie de sala de estar de um imóvel que está pra ser alugado).


- Após você, adquiri hábitos de higiene. Depois da última vez em que nos falamos, naquele dia em que você estava de malas prontas pra se mudar, aprendi a lavar as mãos para me desprender dos vocês imanentes em mim. Lavei as mãos três vezes, e depois, passei a lavá-las uma vez por hora durante uns seis dias, e agora, cada vez que encosto em alguém eu lavo as mãos na ânsia de não levar esse alguém comigo, esses ácaros de alguém que podem ficar presos em minhas digitais.

- Eu também escovei os dentes e a língua. Escovo os dentes com vigor, esfrego a escova com força sobre minha língua até sentir um leve ardor, um descolamento de camadas, que é pra apagar um beijo, uma palavra que ficou perdida, pendurada sem ser dita nesse vão entre língua, dente e lábio.

- Estou assim, por um tempo, tentando há uns dias falar com você. Você me escapa. Ainda não inventaram uma maneira de apagar um pensamento. Creio que se lavar a cabeça com um xampu forte, um xampu ácido, vou conseguir aos poucos apagar aquela tarde em que passamos juntos, os três, deitados sobre o mesmo colchão. Mas está certo que naquela tarde eu desejava você e ela da mesma maneira, o que me excitava mais era estar ao mesmo tempo com vocês naquele colchão.

- Mas agora, as coisas mudaram?
- Sim, as coisas mudaram, as coisas sempre mudam. Eu olho um horizonte agora onde enxergo um fim de tarde lindo lindo. As vezes, em meus caminhos diários, esses caminhos que vou soletrando com os pés em percursos nomeados ditos casa-faculdade ou faculdade trabalho, eu vejo uns sóis tão fortes (é por isso que creio que sejam mais de um) e penso em você. Tenho pensado em você incessantemente.
- É?
- É?
- De que forma?
- Não como um amor perdido, um travo de garganta, nada disso, te vejo como um amor consumado, como uma espécie de sala de aula. Aliás, te enxergo nas lousas das salas de aula também. Você é uma professora, no fundo. Nem um pouco didática, saliento, porque faz seus alunos sofrerem.
- Eu me sinto tão sozinha, por aqui, às vezes. Eu ando por essa cidade que eu não conheço mas finjo conhecer e falo com esses amigos que eu não conheço e finjo conhecer. Troco de nome, invento apelidos. As pessoas aqui me chamam de um jeito que você nem pode imaginar. E elas não sabem que houve um passado antes delas, elas me enxergam como uma coisa pronta, e as vezes é assim que eu também me enxergo por essas bandas daqui, uma espécie de obra de arte acabada.
- Você se esquece que um dia você era uma massa inerte de argila né? E que foram vários artistas que te esculpiram, minimamente, eu fui um deles. Acho que desenhei suas mãos, foi isso. No começo aquele barro todo que se amontoava nas pontas de seus braços não fazia sentido nenhum. Depois eu fui moldando, apertando aquele barro por entre meus dedos e desenhei sua mão nessa argila. Ai ai, ai você ficou tão presa em minhas mãos que tive que lavá-las por seis dias seguidos, três vezes, mas ainda restavam uns trechinhos de você debaixo das minhas unhas.
- Não era culpa minha. Eu me sinto tão sozinha por aqui, às vezes. Mas vou a festas, dou risadas, bebo todas e me deixo amar e ser amada sem cadência nenhuma, procurando apenas me divertir.
- É. Eu procuro fazer o mesmo. Mas devo admitir que ultimamente quando aponto para a frente indicando um caminho para alguém, ou mesmo contando uma anedota, quando gesticulo muito e tenho por hábito gesticular enquanto falo, eu ainda acho umas bolinhas dessa argila na superfície das unhas.
- Você mudou tanto.
- Estou nostálgico. Ando nostálgico esses dias. Tenho conversado muito com ela, me faz bem nossas conversas. Me aconselhou (ela) a procurar um médico, tratar minha doença, fazer exercícios, comer verduras, tomar chá verde, largar os vícios e virar vegetariano. Ela disse que tudo isso mudou a vida dela. Ando precisando mudar a minha.
- Você envelheceu, acho.
- Envelhecemos. Ainda que não saibamos o que isso exatamente significa.
- Eu sei, um pouco, acho. Envelhecer é olhar pra trás e ver que sua vida já tem história desenhada.