terça-feira, 1 de junho de 2010

Intimidade

(Notas para uma possível peça de teatro.)

Ao som de 'Pérola Negra' do Luiz Melodia, os atores entram em um palco vazio com alguns elementos de casa (talvez fotos jogadas no chão, uma máquina de escrever creio que seja uma boa ideia, uma vitrola de onde pode estar vindo a música do Luiz Melodia. Uma luz amarela seria ideal, e talvez ao fundo a ideia de um cenário que represente janelas de um prédio, enfim, uma espécie de sala de estar de um imóvel que está pra ser alugado).


- Após você, adquiri hábitos de higiene. Depois da última vez em que nos falamos, naquele dia em que você estava de malas prontas pra se mudar, aprendi a lavar as mãos para me desprender dos vocês imanentes em mim. Lavei as mãos três vezes, e depois, passei a lavá-las uma vez por hora durante uns seis dias, e agora, cada vez que encosto em alguém eu lavo as mãos na ânsia de não levar esse alguém comigo, esses ácaros de alguém que podem ficar presos em minhas digitais.

- Eu também escovei os dentes e a língua. Escovo os dentes com vigor, esfrego a escova com força sobre minha língua até sentir um leve ardor, um descolamento de camadas, que é pra apagar um beijo, uma palavra que ficou perdida, pendurada sem ser dita nesse vão entre língua, dente e lábio.

- Estou assim, por um tempo, tentando há uns dias falar com você. Você me escapa. Ainda não inventaram uma maneira de apagar um pensamento. Creio que se lavar a cabeça com um xampu forte, um xampu ácido, vou conseguir aos poucos apagar aquela tarde em que passamos juntos, os três, deitados sobre o mesmo colchão. Mas está certo que naquela tarde eu desejava você e ela da mesma maneira, o que me excitava mais era estar ao mesmo tempo com vocês naquele colchão.

- Mas agora, as coisas mudaram?
- Sim, as coisas mudaram, as coisas sempre mudam. Eu olho um horizonte agora onde enxergo um fim de tarde lindo lindo. As vezes, em meus caminhos diários, esses caminhos que vou soletrando com os pés em percursos nomeados ditos casa-faculdade ou faculdade trabalho, eu vejo uns sóis tão fortes (é por isso que creio que sejam mais de um) e penso em você. Tenho pensado em você incessantemente.
- É?
- É?
- De que forma?
- Não como um amor perdido, um travo de garganta, nada disso, te vejo como um amor consumado, como uma espécie de sala de aula. Aliás, te enxergo nas lousas das salas de aula também. Você é uma professora, no fundo. Nem um pouco didática, saliento, porque faz seus alunos sofrerem.
- Eu me sinto tão sozinha, por aqui, às vezes. Eu ando por essa cidade que eu não conheço mas finjo conhecer e falo com esses amigos que eu não conheço e finjo conhecer. Troco de nome, invento apelidos. As pessoas aqui me chamam de um jeito que você nem pode imaginar. E elas não sabem que houve um passado antes delas, elas me enxergam como uma coisa pronta, e as vezes é assim que eu também me enxergo por essas bandas daqui, uma espécie de obra de arte acabada.
- Você se esquece que um dia você era uma massa inerte de argila né? E que foram vários artistas que te esculpiram, minimamente, eu fui um deles. Acho que desenhei suas mãos, foi isso. No começo aquele barro todo que se amontoava nas pontas de seus braços não fazia sentido nenhum. Depois eu fui moldando, apertando aquele barro por entre meus dedos e desenhei sua mão nessa argila. Ai ai, ai você ficou tão presa em minhas mãos que tive que lavá-las por seis dias seguidos, três vezes, mas ainda restavam uns trechinhos de você debaixo das minhas unhas.
- Não era culpa minha. Eu me sinto tão sozinha por aqui, às vezes. Mas vou a festas, dou risadas, bebo todas e me deixo amar e ser amada sem cadência nenhuma, procurando apenas me divertir.
- É. Eu procuro fazer o mesmo. Mas devo admitir que ultimamente quando aponto para a frente indicando um caminho para alguém, ou mesmo contando uma anedota, quando gesticulo muito e tenho por hábito gesticular enquanto falo, eu ainda acho umas bolinhas dessa argila na superfície das unhas.
- Você mudou tanto.
- Estou nostálgico. Ando nostálgico esses dias. Tenho conversado muito com ela, me faz bem nossas conversas. Me aconselhou (ela) a procurar um médico, tratar minha doença, fazer exercícios, comer verduras, tomar chá verde, largar os vícios e virar vegetariano. Ela disse que tudo isso mudou a vida dela. Ando precisando mudar a minha.
- Você envelheceu, acho.
- Envelhecemos. Ainda que não saibamos o que isso exatamente significa.
- Eu sei, um pouco, acho. Envelhecer é olhar pra trás e ver que sua vida já tem história desenhada.

2 comentários:

Talilali disse...

Muito tocante seu texto. É Léo, você está velho.

maravelha disse...

viu. não fui só eu que percebi